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Contrato entre Globo e Neymar foi ruim para o jornalismo e o espectador

Mauricio Stycer

19/02/2018 16h00


A notícia do dia, publicada pela "Folha", combinou esporte e mídia. Reportagem de Alex Sabino e Diego Garcia mostrou que Neymar manteve um contrato com a Globo em 2014 e 2015. A relação de parceria, escrevem os jornalistas, não impedia o atleta de atender outros veículos, mas dava regalias à Globo, como ter acesso a informações antes dos concorrentes, obter entrevistas exclusivas e outros privilégios.

Muita gente se perguntou qual seria o problema desta associação. Vou tentar explicar. Ainda que não seja ilegal, uma relação deste tipo entre a principal emissora e o maior jogador do país, no ano da Copa do Mundo no país, tem uma série de implicações éticas para quem é jornalista.

Sendo Neymar um personagem cujo contato com os jornalistas é muito controlado, é fácil imaginar que a Globo foi beneficiada por ter uma relação de negócios com o craque. A reportagem da "Folha" lembra as muitas participações do jogador na programação da emissora em 2014. Canais concorrentes mereceram tratamento parecido?

Em maio de 2014, cheguei a escrever sobre o fato de Neymar aparecer num mesmo domingo, em duas entrevistas, no "Esporte Espetacular" e no "Faustão". A conversa com Ivan More destinou-se, basicamente, a mostrar o instituto que o jogador estava construindo na Praia Grande. Sobre a overdose, anotei: "A Globo já tem uma entrevista com o camisa 10 da seleção no 'estoque'. Foi realizada por Luciano Huck em abril, em Barcelona, e permanece inédita. Deve ir ao ar no sábado, 7 de junho, ou no seguinte".

Em julho de 2014, uma entrevista ao "Fantástico" chamou a atenção pelo fato de o jogador estar usando óculos. Era ação comercial. "Você usa óculos mesmo ou é só charme?", perguntou Tadeu Schmidt. "Isso é só um estilinho", respondeu Neymar, que tinha, na época, um contrato de R$ 15,4 milhões por ano com a marca do produto.

Além de desfavorecer a concorrência, um acordo deste tipo coloca em questão o jornalismo da Globo. Os profissionais da emissora, muito competentes, tiveram liberdade para tratar Neymar com o rigor necessário? Ou foram orientados a "pegar leve" com o craque nas muitas entrevistas exclusivas que ele deu?

Mensagens reproduzidas pela "Folha" mostram que o estafe de Neymar julgava ter direitos que não combinam com a prática de bom jornalismo. "Tinha sido garantido que a entrevista seria gravada e, caso algum assunto, pergunta ou resposta não fosse adequada, poderia solicitar que fosse excluída", afirma o pai de Neymar a um assessor.

A Globo é parceira da CBF, de quem compra os direitos de transmissão de partidas oficiais e amistosos da seleção brasileira. Isso dá à emissora direito a acesso que outros não possuem. Mas alargar este direito a um jogador impressiona.

Também chama a atenção o fato de que em 2014/15 a área de esportes da Globo ainda estava vinculada ao jornalismo, cujas regras são bem claras quanto a importância de manter totalmente separadas as áreas de noticiário e publicidade. Desde o ano passado, o esporte se tornou uma unidade autônoma.

Neymar é um ídolo e sua presença na TV é uma alegria para os fãs. Mas imaginar que as suas participações na TV em 2014/15 foram embaladas por negócios é muito ruim para o jornalismo e, em última instância, para o espectador.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.