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A falta que faz uma biografia de Pelé

Mauricio Stycer

22/10/2010 11h20

Entrevistei Pelé duas vezes – por ocasião dos seus 60 anos e, quatro anos depois, na época do lançamento do filme "Pelé Eterno". Nas duas ocasiões, pedi a colegas que registrassem em foto meu encontro com o rei do futebol. Mantenho as duas imagens em porta-retratos no escritório da minha casa.

Digo isso para sublinhar, de cara, o tamanho da minha admiração pelo sujeito que neste sábado comemora 70 anos.

Que eu lembre, vi Pelé jogar apenas duas vezes, numa partida do Santos contra o Botafogo e num amistoso da seleção brasileira. Conheço o Rei como quase todo mundo da minha idade ou mais jovem – pelas imagens que o registraram em ação, pelas suas entrevistas, pelos relatos dos que o conhecem.

Há dezenas de livros sobre Pelé, além de centenas – sobre outros personagens – que contam histórias a respeito do craque. Há dois grandes documentários ("Isto É Pelé" e "Pelé Eterno") com registros de centenas dos seus mais de mil gols, além de uma infinidade de programas jornalísticos e filmes que relatam a sua história.

Por que, apesar de tudo isso, tenho a sensação que não conheço Pelé direito? Vou arriscar algumas hipóteses.

1. Pelé ganha a vida, há pelo menos 40 anos, como garoto-propaganda. Para ele, imagem é tudo. Por isso, a controla com zelo.

2. Há anos, Pelé conta sempre as mesmas histórias do mesmo jeito e, pior, falando na terceira pessoa. É como se ouvíssemos relatos homéricos, grandes lendas e não situações vividas por gente de carne e osso.

3. Os grandes feitos de Pelé, entre o final dos anos 50 e o início dos 60, ocorreram numa época em que o jornalismo esportivo era pouco objetivo e muito emocional.

4. Todos os contemporâneos de Pelé no futebol repetem, igualmente, os mesmos casos, sempre sublinhando as mesmas qualidades do jogador. Mesmo atitudes altamente condenáveis, como entradas violentas que causaram lesões gravíssimas em adversários, são relatadas com leveza, como se fosse uma qualidade do jogador, que "sabia se defender" das pancadas.

5. As polêmicas relacionadas a vida pessoal de Pelé sempre foram deixadas em segundo plano. Esta é uma questão que não diz respeito a ele, mas a uma boa tradição da imprensa brasileira mais séria, de não avançar o sinal em matéria de vida privada de pessoas públicas.

6. Casos recentes envolvendo Pelé, como a filha que não reconheceu ou os problemas policiais do filho, ganharam tratamento sensacionalista. Como Pelé evita comentar os assuntos negativos, é difícil avaliar corretamente o que está em jogo.

7. Uma rara tentativa de avaliar o legado do jogador mais criticamente, o livro "A Verdade sobre Pelé", de Adriano Neiva, o De Vaney, publicado na década de 70, mistura questionamentos interessantes com bobagens que revelam ressentimento e, por isso, não é levado a sério.

8. As idas e vindas de Pelé no campo da política esportiva, sua pouco eficaz atuação como ministro e suas relações com a CBF, quando esmiuçadas por jornalistas independentes, tem pouca repercussão. A opinião pública parece sempre muito compreensiva com Pelé.

9. Pelé desmente a famosa frase de Tom Jobim, que disse: "No Brasil, sucesso é ofensa pessoal". Como Roberto Carlos e, talvez, Lula, Pelé é reverenciado acima do bem e do mal.

10. Ainda não foi escrita "a" biografia de Pelé.

Em tempo: um site especial, caprichado, sobre Pelé pode ser visto aqui.

Em tempo 2: Aos leitores que reclamaram da menção a Lula no tópico 9, esclareço que não é um juízo de valor ou uma manifestação político-eleitoral da minha parte, mas uma referência à popularidade do presidente, cuja aprovação, na mais recente pesquisa Datafolha, alcançou a taxa de 81% de "ótimo" ou "bom".

Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.