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Livro expõe quatro divergências essenciais entre Boni e Walter Clark, os criadores do 'padrão Globo'

Mauricio Stycer

06/12/2011 06h15

A transformação da Rede Globo, um canal carioca de pouca expressão, na principal emissora do país é atribuída, de forma quase consensual, a dois homens de televisão, ambos então nos seus 30 anos de idade – Walter Clark (1936-1997) e Jose Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni (1935).

Clark chegou no final de 1965, oito meses depois da inauguração da TV, e contratou Boni no início de 1967. Para além do sucesso incontestável da parceria, que levou a Globo à liderança de audiência e de mercado, a relação dos dois é objeto de muita especulação.

Em 1991, Clark publicou suas memórias, "O Campeão de Audiência", na qual se diz traído por Boni e o responsabiliza, entre outros, por sua demissão da Globo, em 1977. Só agora, em 2011, ao publicar as suas lembranças do período, no badalado  "O Livro do Boni", é que o executivo finalmente responde a Clark.

São muitas as referências, nos dois livros, ao que ambos fizeram e deixaram de fazer na Globo. Selecionei quatro passagens que mostram divergências explícitas ou visões diferentes sobre os mesmos episódios.

Além destas diferenças, também chama a atenção o estilo dos dois relatos. O de Clark, escrito com o auxílio do jornalista Gabriel Priolli, é apaixonado, caótico, mistura vida pessoal com trajetória profissional e mostra como, frequentemente, as duas se entrelaçam e o atrapalham. Já o texto de Boni é organizado, metódico e, em diversos momentos, parece um relatório, repleto de nomes e datas.

Entre os personagens coadjuvantes na disputa Clark x Boni, os principais nomes citados são os de Joe Wallach, ex-representante do grupo americano Time-Life e então superintendente de Administração, Jose Ulisses Arce, superintendente de Comercialização, e Armando Nogueira, diretor de jornalismo. Além, é claro, de Roberto Marinho, mencionado quase sempre como "dr. Roberto" pelos dois executivos.

Armando Nogueira e a criação do Jornal Nacional
"O curioso nesta história é que o Armando Nogueira, que hoje aparece como criador do Jornal Nacional, foi quem mais resistiu a ele. O JN não teve propriamente um autor, um gênio que teve o estalo. Nasceu de muitas discussões de toda a equipe, eu, Boni, Armando, Arce, Joe, Zé Otavio. Todos sabíamos que, algum dia, operaríamos em rede e que quando este momento chegasse, teríamos um jornal de cobertura nacional. Mas na hora de implantá-lo para valer, o Armando refugou." (Clark)

"Era um sonho meu e do Walter e apenas aguardávamos uma oportunidade para por o projeto em prática. (…) Um dia, quando eu, o Arce, o Borjalo, o Otto Lara Resende, o Magaldi e o Armando Nogueira almoçávamos na sala da diretoria da Globo, o assunto telejornal de rede veio novamente à baila. O Arce queria saber porque não criávamos logo o tão sonhado produto e o Armando explicou de forma simples e concisa, como era seu estilo:
– Não há dinheiro e a afiliadas não vão querer.
O Walter e o Arce entendiam que o Armando era contra o JN. Não era nada disso. Armando e eu queríamos apenas levar o projeto a sério." (Boni)

(Na foto acima, Cid Moreira e Hilton Gomes, os primeiros apresentadores do noticiário)

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A grade
"Fui eu quem criou a estrutura de grade de programação, assim como fui quem sempre lutou para fazer TV em rede no Brasil" (Clark)

"Outra balela que existe sobre a televisão brasileira é a que atribui a criação da grade a uma emissora ou a alguma pessoa. Nada disso. A grade existe desde que a televisão norte-americana entrou no ar e, no Brasil, nos anos 1940, não havia emissora de rádio que não tivesse a sua grade". (Boni)
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O incêndio de 1976
"Quando chegamos lá embaixo e vimos aquela barafunda formada, eu propus que ele cuidasse da operação da emissora que eu dirigiria o trabalho de resgate das fitas de videoteipe com os bombeiros. Foi o que fizemos. (…) Obviamente, como eu fiquei todo o tempo na rua, dando ordens, conversando com os bombeiros, articulando aquela operação toda, no dia seguinte só dava eu nos jornais. (…) Aquela publicidade que eu não pedi a ninguém foi demais para o Boni. Ele ficou louco de raiva. Mandou uma carta ao Roberto reclamando que, enquanto trabalhava para manter a estação no ar, eu me promovia à custa da desgraça no Globo." (Clark)

"Convoquei todas as centrais sob minha responsabilidade e começamos a nos preparar para voltar ao ar, direto do Rio. Enquanto isso, o Walter Clark fazia show para a mídia, comandando o resgate do acervo de fitas de videotape (…) O dr. Roberto Marinho quis saber como havia ocorrido aquele milagre e me pediu um relatório, que fiz com cópia para o Walter Clark e o Joe Wallach. O Walter, que não participou da operação e nem tomou conhecimento dela, não gostou. (…) O incêndio foi um marco em nosso relacionamento" (Boni)

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Clark x Boni
"Jamais neguei, e não o faço agora, a importância de Boni no crescimento da Globo e na história da própria televisão brasileira. Sempre afirmei, em todas as oportunidades, diante de todas as platéias, a competência que ele tem. Sempre considerei que o meu maior mérito na TV foi ter conseguido formar grandes equipes e sei que o Boni foi a maior estrela de todos os times que montei. Mas ele preferiu abrir mão da nossa amizade e investir num projeto próprio de poder, que me excluía". (Clark)

"Em 1977, dez anos após eu ter chegado à Globo, o Walter foi demitido pelo dr. Roberto, repentinamente. O dr. Roberto vinha cismando com o comportamento dele dentro e fora da empresa, principalmente em relação ao abuso de álcool e, segundo alguns, drogas. (…) Para mim, ele foi vítima de um temperamento extremamente sensível e de uma vaidade sem limites que o levaram ao alcoolismo. (…) Não tive nada a ver com a saída do Walter. (…) Quando foi formalizada a demissão, o desagradável foi que o Walter esperava que eu saísse com ele, mas eu não podia fazer isso, pois, nesse período, já havia estabelecido uma parceria intensa com o Joe Wallach e estava comprometido com todos os companheiros que tirei das outras emissoras e trouxe para a Globo. (…) O que eu poderia tentar era segurar a demissão do Walter, e eu tentei." (Boni)

Em tempo: Outros dois livros de personagens envolvidos nesta história tratam do assunto. O primeiro, de onde se reproduziu a foto no alto deste texto, é "Meu Capítulo na TV Globo", de Joe Wallach. O segundo é a biografia oficial "Roberto Marinho", de Pedro Bial.

Observação: Este texto foi publicado originalmente, e de uma forma muito mais agradável de ler, no UOL Televisão.

Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.