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Memória: uma entrevista reveladora com John Casablancas

Mauricio Stycer

20/07/2013 17h31

Livros de memórias costumam apresentar versões adocicadas, ou livres de manchas, da vida de seus protagonistas. Este está longe de ser o caso de "Vida Modelo", a autobiografia de John Casablancas (1942-2013), publicada em 2008.

Ao ler a notícia de sua morte, neste sábado, me lembrei da entrevista que fiz com ele, depois de ler o livro, no final de novembro de 2008. É uma conversa forte e reveladora, que diz muito sobre quem foi Casablancas e sobre o mundo que ele ajudou a construir. Foi publicada no site Último Segundo, mas não está disponível online. Reproduzo-a abaixo:

John Casablancas revela traições, racismo, drogas e exploração de modelos no mundo da moda

Burburinho no mundo da moda, um ambiente sempre muito sensível à fofoca e à intriga: John Casablancas, depois de muito prometer, está lançando o seu livro de memórias, no qual descreve a sua trajetória como criador de uma das mais famosas e importantes agências de modelos do mundo, a Elite.

Sobra para todo mundo em "Vida Modelo" (Agir, 406 pág.s, R$ 49). De Gisele a Anna Wintour, a mais poderosa editora de moda do planeta, passando por donos de agências, modelos, bookers, Casablancas fala com espantosa sinceridade dos bastidores do universo que ele convive há quase quatro décadas.

Um dos nomes míticos do mundo da moda, Casablancas é responsável por revelar ou promover nomes como Iman, Claudia Schiffer, Cindy Crawford, Naomi Campbell, Linda Evangelista e Gisele Bündchen, entre muitos outros.

Filho de ricos espanhóis da Catalunha, ele descreve no livro a infância passada entre Estados Unidos, México e Europa (estudou em internatos de luxo na Suíça e se formou na França). É a parte menos interessante de suas memórias, escritas com a colaboração da jornalista Ana Maria Bahiana.

A partir do nascimento de sua primeira agência, a Elysée 3, criada com a ajuda de US$ 100 mil do pai, Casablancas entra num mundo que surpreende pelos excessos – traições generalizadas, fartura de drogas, festas loucas, sexo fácil e muito dinheiro. "Nada do que eu fiz mudou o mundo, mas que delícia que foi!", ele diz, logo no início.

Aos 66 anos, casado pela terceira vez, tem sete filhos, entre ele Julian, líder da banda Strokes. Enquanto dirigia o carro do Rio de Janeiro para Búzios, Casablancas concedeu esta entrevista, por telefone (no viva voz):

A traição é um tema recorrente ao longo de todo o livro. Modelos traem agências, bookers traem donos de agências, donos de agências traem outros donos de agências… Que mundo é esse?
Efetivamente. A traição vai de mão dada com o ego. As pessoas que se acham muito, sempre acham que são mal pagas, mal compreendidas, que sempre merecem muito mais reconhecimento do que estão recebendo. A pessoa que se acha muito e acha que o mundo é injusto tem uma tendência natural a trair. Ela acha que não é traição, mas retribuição pelo que é justo. A modelo acha que tudo de bom que aconteceu na sua carreira foi graças à sua beleza e talento, e que tudo que aconteceu de ruim foi por falta de bom management e culpa da sua agência. Nós somos pagos a base de comissão. Com o tempo, ela esquece isso e acha que nós somos as pessoas que comem um pedaço do seu cachê, que somos uma espécie de urubus.

E os bookers?
Já os bookers, acham que devemos tudo ao trabalho deles. Não param um segundo para perguntar por que a modelo está lá, qual foi o investimento que houve para que a modelo fosse, primeiro, achada, e depois, a custo alto, levada a Paris, Milão, Nova York para desenvolver a sua carreira.

E os donos de agências? Assim como outros fizeram com você, você também roubou modelos de outras agências?
Muitas, muitas, muitas. Fui um grande ladrão de modelos. No meu caso, aprendi da maneira mais dura com a minha agência pequena, no começo. Todos os grandes não tiveram piedade comigo. Eu não tinha dinheiro, não tinha reputação, não tinha prestígio. Eu tinha muito bom olho. Eu achava modelos lindas e eles, com seus espiões, olheiros, me roubavam. Sofri muito no começo. E disse: no dia em que eu tiver prestígio e dinheiro, serei sem piedade. E fui sem piedade. Roubei as melhores modelos de todas as agências.

Isso, de certa forma, não esvazia o seu protesto por ter perdido a Gisele no momento em que ela estava começando a se transformar numa supermodelo?
Esses roubos que me fizeram, e os roubos que eu fiz, foram muito antes da Gisele. Isso ocorreu quando a Gisele não tinha nem nascido. O problema da Gisele foi diferente. Gisele foi a única modelo que puniu a agência por ter feito ela número 1. Como se você dirigisse um timezinho ruim e pegasse um treinador que, depois de quatro anos, te leva a ser campeão e, no dia de receber a taça, você manda ele embora e entrega a taça a outro treinador que não teve nada a ver com a vitória.

No livro você compara a Gisele a Pelé. Você escreve: "Era como se o Pelé tivesse ido embora do Santos logo depois da vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1958, xingando o time, falando mal do Brasil e sem que a sua transferência trouxesse um tostão para o clube e o país que o tinham formado. Acho que os presidentes do Santos e da CBF estariam zangados até hoje. Como eu."
Em 33 anos de carreira nunca vi uma modelo tão fria, tão calculista, tão sem coração e sem consideração pelos outros. Além de muito fria, não tem generosidade. Só se preocupa com ela mesma. E daí vem a minha magoa. O trabalho que fizemos com ela foi feito perfeitamente. Ela teve muitas oportunidades, nos anos seguintes, como o meu trabalho foi bem feito e construído.

Você escreve: "Seria saudável que, sem necessidade de intervenção da justiça, as agências se autodisciplinassem e o meio, como um todo, concordasse em não representar garotas com menos de 16 anos."
Exatamente. É uma vergonha ver o Estado, que já é tão imperfeito, ser obrigado a regulamentar qual deve ser a massa muscular do corpo de uma modelo. Os clientes são totalmente indiferentes à saúde das modelos. E as agências são fracas, fazem o que o cliente quer. Se amanhã o cliente quiser modelos sem dentes, as agências vão concordar em mandar modelos para o dentista arrancar os dentes. É incrível como a nova geração de agências não têm personalidade, não se afirma. Nunca deixei um cliente me forçar a tendências que não acho saudáveis.

O que você sugere?
Seria muito fácil as agências se organizarem para fazer três coisas. Um: não trabalhar com modelos de menos de 16 anos. Dois: se uma modelo tem problemas com drogas, ninguém trabalha com ela até ela se tratar e se curar. Três: modelo abaixo de um peso razoável, não é preciso definir um número, também não trabalha. E assim evitamos bulimia, anorexias e todos aqueles problemas.

O concurso que você está fazendo em sua nova agência, a Joy, aceita candidatas com 15 anos. Não é uma contradição?
Há uma diferença entre uma menina ganhar um concurso com 15 anos e começar a trabalhar em São Paulo, Milão ou Paris depois que tem 16, 17 anos. Na realidade, sou a favor da menina terminar a escola. Não exijo isso pois se eu peço isso ela vai para outra agência. Mas, se eu pudesse escolher, eu teria preferência por aquelas que já completaram a escola. É melhor. Quanto mais maduras, mais elas podem se adaptar ao mundo da moda, desenvolver um estilo, tomar as decisões certas…

Você escreve que "o auge da Elite em Nova York foi também o auge das drogas. Todo mundo usava: modelos, fotógrafos, clientes, editores, mas também advogados, doutores e banqueiros. Era uma epidemia generalizada. Nos estúdios fotográficos era cocaína por todos os cantos." Hoje, você diz que as agências não deviam aceitar modelos com problemas com drogas. Ou seja, esse problema permanece?
As drogas são um problema do mundo – não do mundo das modelos. Tem meninos que já estão fumando maconha com 10 anos. É uma praga. Os pais são responsáveis por não mostrar suficientemente às crianças o desastre que são as drogas, a destruição que elas causam no cérebro e no corpo. Dentro do mundo da moda, é também um problema. Muitas modelos, porque são forçadas a perder peso, usam drogas. Outro problema. Com 16, 17 anos, um jovem normalmente não tem muito dinheiro; uma modelo, tem. Com dinheiro, se ela é viciada, ela tem mais facilidade para comprar drogas.

E a questão da prostituição neste mundo?
É um tema que a imprensa gosta, mas não existe. Se é prostituta nunca é modelo. Em 33 anos de carreira, conheci um caso de uma menina que era as duas coisas. Quando ela começou a ser modelo, já era prostituta, e ninguém sabia. É uma profissão que quem quer ser modelo tem que ser modelo. E ponto.

Você fala: "Estou desgostoso com a falta de profissionalismo de muitas agências de hoje, e sinto pena ao ver modelos sendo tratadas como objetos descartáveis, com carreiras muito mais curtas do que poderiam ter tido".
Houve uma paixão do público com a carreira de modelo, na década de 90. Daí, muita gente começou a ser agente de modelos sem ter a capacidade para isso. Há muita agência de modelos de segunda categoria. E os clientes se aproveitaram disso para, usando a concorrência entre agências, pagar cada vez menos. Para eles, é muito prático que a modelo não seja conhecida e facilmente descartável.

A respeito da falta de profissionalismo, você escreve que, no início, a única maneira da sua agência sobreviver era fazendo caixa dois. Esse problema ainda existe?
Acho que o caixa dois, em todo o Brasil, está diminuindo. Há cada vez mais fiscalização e mais controle. As pessoas que querem fazer um negócio sério brincam com isso cada vez menos. Acho que quase não existe mais nas agências de primeiro mundo e de qualidade.

Você diz no livro que "as editoras de moda negam, mas é matematicamente demonstrável que há, nas revistas, uma preferência marcante por modelos brancas, que não reflete a proporção entre raças nem nos Estados Unidos nem no Brasil". Mas esse problema não é anterior, das agências?
Não. A agência só pode desenvolver modelos que são consumidas pelo mercado. Não adianta eu ter uma agência só de modelos negras, por exemplo, e elas não conseguirem trabalhar. A discriminação não é racial, é social e econômica. O poder de compra da clientela de raça branca, no Brasil e nos Estados Unidos, é superior que o da raça negra. Então, cinicamente, uma editora de revista diz que se colocar uma modelo negra na capa as vendas dela vão cair 30%.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.


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