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Novela não tem que ser como o público quer, diz autor de “Velho Chico”

Mauricio Stycer

30/09/2016 00h01

BrunoLuperi2Com apenas 28 anos, Bruno Luperi é possivelmente o mais jovem autor de uma novela das 21h da Globo. Neto de Benedito Ruy Barbosa, ele começou a trabalhar em "Velho Chico, inicialmente como colaborador, ao lado de sua mãe, Edmara, sob a supervisão do avô. Depois da saída dela acabou assumindo como o autor principal da maior parte dos 173 capítulos.

Casado, pai de um menino de 2 anos e de uma menina prestes a nascer, Luperi é formado em comunicação. Por oito anos, trabalhou com publicidade, como diretor de arte de agências importantes, em São Paulo, até começar a se envolver com roteiros e escrita literária. "Agora, nunca mais. Tirei as correntes", diz.

Antes de estrear em "Velho Chico", Luperi havia feito três roteiros para cinema – todos ainda guardados na gaveta. Na entrevista a seguir, concedida ao UOL na última segunda-feira (26), ele fala sobre a novela, sua relação com o avô, com o diretor Luiz Fernando Carvalho e com o público.

beneditoedileneedmaraDe quem é Velho Chico
Essa é a minha estreia. O trabalho foi concebido também pela minha mãe, Edmara, e tem a mão também do meu avô, Benedito. Assim, são três gerações da família envolvidos. Há muitos anos, meu avô dizia que havia uma história no rio São Francisco a ser contada. Minha mãe desenvolveu uma sinopse que contemplava a primeira fase inteira. Quando ela estava batalhando na emissora para colocar a sinopse no ar eu entrei no projeto.

A saída da mãe
Entrei para ser colaborador. A partir da segunda fase, passei a trabalhar com ela. Ela pediu afastamento. Houve vários fatores, internos e externos. Mais que os problemas, uma motivação grande dela foi sentir que eu estava com o barco no eixo já. A relação com a minha mãe é ótima. Foi uma decisão sábia dela. Só tenho a agradecer a oportunidade que ela me deu de colaborar em "Velho Chico".

Frustração e redenção
Eu tinha uma frustração grande de trabalhar com publicidade. Eu não estava usando a minha voz para me expressar. Estava usando a voz de terceiros, de empresas. Nada contra isso, mas eu precisava colocar coisas em que eu acreditava para fora. Escrever "Velho Chico" foi uma consagração desta minha busca, onde consegui externar um pouco do que eu penso.

VelhoChicoluizfernando3Corda tensionada com o diretor
O Luiz (Fernando Carvalho) foi um dos meus padrinhos na profissão. Devo muito a ele. E foi uma troca boa para os dois lados. Acho que eu trouxe uma energia nova, algo que também o motivava a trabalhar, produzir, e ele me trouxe muito da experiência dele. A função de autor é como uma corda que tem que estar sempre um pouco tensionada. É natural que existam visões de mundo diferentes, mas na nossa relação a gente sempre conseguiu falar sobre as nossas divergência. Tive um diálogo muito bom com a direção, com o elenco, com todas as pessoas envolvidas.

velhochicofagundescoronelafranio2Divergência sobre o coronel Saruê
A caracterização do Afrânio na segunda fase foi uma proposta muito do Luiz. Era uma extravagância que havíamos conversado entre nós. Mas quando vi as primeiras imagens, entendi que ele tinha outra coisa na cabeça. A estética era diferente. Foi uma surpresa para mim. Mas corri atrás no texto e dei subsídios para aquilo. Ficou muito bom. O trabalho de um foi provocativo para o trabalho do outro. Sempre respeitando um ao outro, tentamos encontrar o caminho. Vendo agora, o público vai entender bem a metáfora da peruca, a metáfora desta figura patética do poder, esse coronel anacrônico… No fim das contas, as pessoas vão dizer: "Tinha sentido essa peruca".

Público impaciente
O público parece que perdeu um pouco a paciência para ouvir uma história até o final. É como se eu fosse começar a contar uma piada sobre um sujeito que usa uma peruca. Na primeira frase, a pessoa diz: "Não gosto de peruca". Calma, você nem ouviu a história até o final! É uma característica dos dias de hoje. Um imediatismo latente em todo mundo. As pessoas não têm paciência para parar e ouvir, contemplar, escutar. As respostas têm que ser dadas a tempo e a hora. Lidei muito com isso em "Velho Chico".

velhochicomartinO que vai acontecer com Martim?
No caso do Martin (Lee Taylor), por exemplo. O público ficou desesperado porque tem outros finais para o personagem na cabeça. A relação que alguns têm com a obra é semelhante à de quem vai comprar uma roupa industrializada. Eles tratam a obra como se fosse uma camiseta que veio sem uma manga. Você leva na loja e pede para trocar porque ela não tem duas mangas. A novela não é isso. É uma história. Você não tem que ver para ser do seu jeito. O final do Martin não vai acontecer como muitas pessoas queriam. É uma proposta artística. Assim como a peruca do Afrânio, a trajetória do Martim fará completo sentido no final.

"Fiz meu avô chorar"
São 173 capítulos. Assim como a relação com a direção é uma corda tensa, com a supervisão também é. Vivi bons momentos com meu avô no processo. Em um deles me senti um autor de verdade. Quando acabei de escrever a primeira fase, com a minha mãe, levei os capítulos para ele. Para lermos juntos. Ficamos cinco dias nesta leitura. Foi uma experiência fantástica. Ele se sensibilizava e chorava. Ou sorria lendo. Aquele termômetro serviu muito de lição. Fiz meu avô chorar algumas vezes (risos). Posso dizer que descontei o que ele fez comigo. Paguei de volta na mesma moeda.

A sabedoria de Benedito
Ele foi muito sábio na condução, em me instigar sempre a buscar essa linha emocional, os conflitos humanos, os conflitos éticos e morais dos personagens. Foi muito enriquecedor para mim receber isso da pessoa que considero o maior autor de novelas vivo. Quando ele se deparou com situações em que ele faria diferente, ele não exigiu que eu mudasse. Ele apenas perguntava: você acha que está certo? Foi muito generoso comigo. Não houve imposição. Houve discussão, como sempre há, mas não houve nenhum conflito.

De costas para o Ibope
Não acompanho a audiência minuto a minuto. Recebi o aparelho para acompanhar, mas nunca quis. Acredito que uma obra não deva ser influenciada pelos números de audiência, pela pressão. Tenho que ser digno. Não posso abandonar o navio porque não está dando certo num determinado momento. Acreditava muito em "Velho Chico" desde o início, ainda acredito, uma história maravilhosa, e isso me deu muita segurança para não seguir os números de audiência. E foi uma postura que adotei para o processo inteiro. Quase uma esquizofrenia que desenvolvi comigo mesmo de fingir que nada estava acontecendo. Eu me blindei.

Imprensa maniqueísta
Achei a reação da imprensa muito maniqueísta e maldosa, sem sensibilidade artística para julgar o objeto em questão. Foram poucas as situações em que me deixei influenciar por isso. Me chateei muito no começo, mas a partir de determinado momento falei: "Melhor nem ver". Não vai acrescentar nada para a história, para os personagens, só vai me deixar triste. Parei de ler notícias sobre a novela.

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A última cena de Domingos Montagner
Foi uma triste coincidência. Eu tinha acabado de escrever a novela. E fui acompanhar as últimas gravações no Nordeste, na ilha de Cajaíba (BA), cenário do casarão dos Sá Ribeiro. Quando cheguei, o Domingos estava gravando esta cena com o Fagundes, que é uma cena maravilhosa. De muita sensibilidade, bem dirigida. Elogios são poucos para a atuação dos dois. Monstros. Tive o privilégio de estar ali, com eles, neste dia.

A morte do ator
O Domingos viajou e eu fiquei.Quando o acidente ocorreu, eu estava no ônibus, fazendo o percurso Bahia-Alagoas, indo para Piranhas. No meio do caminho, uma produtora recebeu a notícia. Paramos e fomos de helicóptero.Acompanhamos na praia mesmo o final das buscas, até o corpo ser encontrado.

A decisão de manter Santo
Foi um choque muito grande. Uma tragédia muito grande. Nós encontramos um motivo para continuar no amor e dedicação que ele tinha pelo personagem e pelo trabalho. Lá mesmo, quando ainda estávamos no Nordeste, fizemos este "diagnóstico artístico" de que a melhor solução seria não tirar o Santo. Junto com a direção, encontramos uma maneira, esta "câmera subjetiva" representar o olhar dele.

Ironia da arte
Os textos eram muito propícios. Por ironia da arte, a função dramática do personagem tinha acabado de se cumprir, que era a redenção dele com o Saruê. Aquele talvez fosse o último momento de protagonismo dramático do Santo.

O papel da mulher de Domingos
Na volta para São Paulo, conversamos com a emissora e fomos conversar com a esposa dele. Tínhamos esse diagnóstico artístico e queríamos saber o que ela sentia. E ela pediu para continuarmos o trabalho, levarmos até o fim, que seria o que o Domingos faria. E sem ficar prestando homenagens internas. Continuar contando a história que estávamos contando. Ela falou bastante sobre o orgulho que ele tinha de fazer parte de "Velho Chico".

Essa sensibilidade que ela teve motivou todo mundo a continuar o trabalho. Porque foi muito difícil para toda a equipe voltar aos estúdios. Mas foi uma maneira de se despedir do Domingos, não da forma como gostaríamos, mas aos poucos deste personagem. Estou aqui no Rio acompanhando o fim da novela. Vou ficar até o fim. Para ajudar também.

velhochicocameracamilaCâmera subjetiva
Essa tragédia implicou em algumas mudanças do texto. O resultado, estético, ficou muito bonito. É uma singela homenagem. Na direção, eles tiveram a possibilidade de dilatar um pouco o tempo de fala. Os atores estão curtindo muito olhar para a câmera, falar com a câmera, interpretarem em outro tempo. As luzes também estão diferentes. Está sublime. Não é nada lúgubre, pesado. É uma homenagem à vida.

Futuro
Tenho algumas ideias, mas nada muito concreto ainda. Histórias para contar tenho aos montes. Pretendo seguir como autor de novelas até o fim da vida. O prazer e a realização profissional que tive escrevendo a novela eu não tive em nenhum outro trabalho na minha vida.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.