Sem ambição, Os Dias Eram Assim exibe versão da ditadura “para iniciantes”
Mauricio Stycer
24/04/2017 04h01
É sempre arriscado julgar um empreendimento de longo alcance como uma novela – ou mesmo uma "supersérie", como prefere a Globo – com base em seus quatro primeiros capítulos. Mas há motivos suficientes para suspeitar que "Os Dias Eram Assim" é mais um projeto que busca agradar o espectador apelando ao que há de mais fácil e mais óbvio.
Apesar de o horário tardio permitir alguma ousadia, a história de Angela Chaves e Alessandra Poggi bem como a direção de Carlos Araújo tem apostado até agora no mais convencional. Ou, como bem observou Nilson Xavier, em um "novelão".
A falta de ambição de "Os Dias Eram Assim" é especialmente frustrante porque o ponto de partida da trama, como a própria Globo fez questão de divulgar, é uma história de amor afetada pela ditadura militar (1964-1985). Trata-se de um contexto histórico importante a respeito do qual a teledramaturgia brasileira se aventurou muito pouco até hoje ("Anos Rebeldes", "Amor e Revolução").
Nascido em meio a uma manifestação contra o governo (imagem no alto), em junho de 1970, o amor à primeira vista entre a estudante Alice (Sophie Charlotte) e o médico residente Renato (Renato Góes) se torna impossível não porque eles são de classes sociais diferentes, ou por conta de qualquer outro empecilho tradicional do folhetim. É um amor inviável porque o pai de Alice, um industrial poderoso, financia o regime, enquanto o irmão de Renato participou de um protesto que incluiu uma bomba atirada contra a sede da empresa deste homem.
É um conflito ótimo, mas que as autoras parecem ter medo de enfrentar em todas as suas possibilidades. O que se viu nos primeiros quatro episódios foi a ditadura militar se transformar numa mera fachada, uma paisagem, para o drama amoroso.
Da forma como foi mostrada, a situação ignora que naquele momento vários grupos que se diziam revolucionários estavam praticando atos contra o governo, desde sequestros de diplomatas estrangeiros a assaltos a bancos, passando por crimes contra figuras que apoiavam o regime.
Túlio é baleado na ação, preso e levado para a polícia política. Lá é torturado, mas o espectador é poupado de ver o seu sofrimento. Apenas uma breve cena mostra o delegado Olavo (Marco Ricca) o afogando num tanque. Somos informados, mas não vemos, que o jovem morre após a sessão de tortura. Já Gustavo é escondido pela família da namorada em um apartamento.
O segundo capítulo, é preciso reconhecer, trata abertamente de um tema indigesto – o apoio, inclusive financeiro, de empresários ao aparelho de repressão do Estado. Arnaldo não apenas dá dinheiro a Olavo, como parece ter prazer em assistir uma sessão em que Túlio é torturado.
Assim como o texto, a direção também está surpreendendo pouco. A caracterização da maioria dos personagens me parece pouco elaborada, até mesmo preguiçosa, em várias situações.
No segundo capítulo, em três minutos, três personagens com quem devemos antipatizar são vistos bebendo uísque. Irritado com o ataque terrorista à sua empresa, Arnaldo beberica um puro malte escocês enquanto conversa com Kiki (Natalia do Valle). Corta para Vitor (Daniel de Oliveira), namorado de Alice. Chateado com a noiva, que sumiu, ele bebe um uísque. Aparece a empregada e também serve a mesma bebida para sua mãe, Cora (Susana Vieira). O filho sai de cena e Cora entorna o uísque com um gole só. "Dolores, prepara outro pra mim. Preciso relaxar", ela pede.
Esta falta de cuidado se estende ao desempenho extraído do elenco. Com exceção de Sophie Charlotte, muito bem como a frágil Alice, nenhum ator me surpreendeu, até o momento. Vejo alguns bons desempenhos, mas não parecem criados especialmente para os papéis na novela, e sim reproduções de outros trabalhos.
Por opção dos autores, a ditadura é, de fato, apenas um pano de fundo, quando poderia ser uma personagem da história. Um problema semelhante ocorreu, na minha opinião, em "Liberdade, Liberdade", a novela anterior das 23h. Ambientada em Ouro Preto, no início do século 19, a história de Mario Teixeira "desidratou" a luta dos liberais contra a monarquia em nome do romance de Joaquina e Xavier.
"Os Dias Eram Assim", em resumo, parece um "novelão" mesmo, como tantos outros que já vimos. Mostra que a Globo está menos interessada em procurar atender a um público mais exigente, como o horário permitiria. É uma história que poderia estar sendo exibida às 18h sem problema nenhum.
Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
Contato: mauriciostycer@uol.com.br
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