Com ação contra a Globo, MP busca enfrentar o “racismo estrutural” no país
Mauricio Stycer
15/05/2018 05h01
A notificação feita à Globo na última sexta-feira (11), dando dez dias para a emissora "propiciar a representação da diversidade étnico-racial da sociedade brasileira" na novela "Segundo Sol", não é um ato isolado. O Ministério Público do Trabalho pretende fazer recomendações com teor semelhantes a outras emissoras de TV aberta no Brasil.
A informação foi dada ao UOL pela procuradora Valdirene Silva de Assis, coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção à Igualdade e Combate à Discriminação no Trabalho. "É o passo preliminar de uma atuação mais efetiva", diz ela.
No final de 2017, foi criado um grupo de trabalho formado por procuradores do MPT de diferentes regiões do país dedicado especificamente à questão da representação racial na mídia. São eles que assinam a "notificação recomendatória" recebida pela Globo – a primeira desde o início dos trabalhos.
"A proposta não é de atuação punitiva. Compreendemos que passa, antes de tudo, pela conscientização", diz a procuradora Valdirene. A escalação de um elenco formado majoritariamente por atores brancos em uma novela ambientada em Salvador, uma cidade com população, em sua maioria, formada por negros e pardos, "causou uma grande comoção nos movimentos negros", diz ela.
O problema, observa a procuradora, é que a escalação de "Segundo Sol" não é um acidente. "Isso está refletido no racismo estrutural brasileiro. Uma estrutura já consolidada de exclusão da figura do negro em termos de representação. Infelizmente, isto está naturalizado. Precisamos enfrentar".
É neste sentido que o grupo de trabalho do MPT pretende bater na porta de outros canais de TV: "Pretendemos que estas emissoras abram este debate. Revejam as suas práticas", diz Valdirene. "As emissoras não fazem isso sozinhas. É um reflexo desta situação".
Questionei a procuradora sobre dois aspectos da notificação feita à Globo. Primeiro, se esta cobrança não afeta a liberdade de expressão do autor da novela, João Emanuel Carneiro, e da própria emissora. Trata-se de uma situação, ela reconhece, de "conflito com outros direitos". Ou seja, ela defende o apoio à "liberdade de criação desde que não viole o direito de outros" – no caso, o direito dos negros serem valorizados, como prevê, por exemplo, o Estatuto da Igualdade Racial. "É preciso analisar a prevalência de direitos. Qual deve prevalecer?", pergunta.
A segunda questão é se o MPT não estaria, com esta notificação, interferindo numa produção artística. "Não há ingerência", garante a procuradora Valdirene, observando que a recomendação feita à emissora não determina nomes de atores, nem número, nem mesmo como a Globo deve corrigir a distorção que se vê em "Segundo Sol".
Ainda na sexta-feira (11), a Globo confirmou o recebimento da notificação e disse: "Reafirmamos que a Globo respeita a diversidade e repudia qualquer tipo de preconceito e discriminação, inclusive racial". Até o momento, porém, a emissora não informou o que pretende fazer.
Além de dar dez dias para a Globo informar como pretende lidar com o questionamento sobre o elenco de "Segundo Sol", o MPT deu 45 dias para a emissora responder a uma serie de outros pedidos. Reproduzo abaixo:
1. Instituir Grupo de Trabalho e/ou Comitê (observando a paridade na composição, inclusive com a possibilidade de participação de consultoria específica), assegurada a participação de atores negros e representantes de movimentos negros, para desenvolver Plano de Ação/Trabalho que contemple medidas aptas a garantir inclusão e a igualdade de oportunidades e de remuneração da população negra e equidade de raça e etnia nas relações de trabalho, tanto no acesso quanto no curso desta relação;
2.Oferecer o suporte técnico e financeiro necessário ao desenvolvimento dos programas e ações estabelecidos no Plano de Ação/Trabalho a ser elaborado;
3. Realizar de imediato censo dos trabalhadores que prestam serviços à empresa, empregados ou não, com recorte de raça/cor e gênero, de forma integral e com indicadores de gerência e diretorias, possibilitando a criação de um observatório permanente, transparente a todos os trabalhadores e trabalhadoras, para ser utilizado como ferramenta para a tomada de decisões estratégicas de conscientização, qualificação, contratação e ascensão profissional, censo este que deve ser atualizado de forma periódica;
4. Realizar levantamento sobre a representação das pessoas negras e o número de artistas negros e negras que aparecem em telenovelas, séries, propagandas, programas de entretenimento, entre outros produtos, produzidos pela empresa bem como o de jornalistas e comentaristas;
5. Promover internamente ações de conscientização sobre o racismo na sociedade e, externamente, em mensagens publicitárias, programas jornalísticos e programação em geral, divulgação das ações e mensagens alusivas às datas simbólicas da luta e enfrentamento ao racismo, notadamente nos meses de julho (Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha) e novembro (Dia da Consciência Negra), visando à informação e sensibilização do corpo funcional para a valorização da diversidade racial na empresa e combate à discriminação histórica e estrutural presente na sociedade brasileira;
6. Elaborar campanhas pela promoção da igualdade e equidade raça/cor e gênero, como forma de fortalecer a cultura organizacional da diversidade na empresa, bem como apoiar campanhas de valorização da pessoa negra e de enfrentamento ao racismo, divulgando as manifestações da cultura, a memória e as tradições afro-brasileiras, reservando espaços de veiculação na sua programação diária para campanhas institucionais e/ou de movimentos sociais que atuam no enfrentamento à discriminação racial e promoção da igualdade;
7. Contemplar a diversidade racial nas campanhas publicitárias da empresa e em todas as produções artísticas e jornalísticas realizadas, priorizando a participação de negros e negras no planejamento/criação e desenvolvimento das campanhas e produções;
8. Promover debates, fóruns, palestras, workshops, cursos, mesas redondas dentre outros, abordando a questão do viés inconsciente, racismo estrutural e institucional, privilégios e representatividade;
9. Adotar e implementar projeto voltado a assegurar a igualdade de oportunidades à população negra para ingresso nos quadros da empresa, revendo processos de seleção, capacitação, treinamento, podendo implementar ações afirmativas para assegurar a efetiva contratação de trabalhadores negros e negras para os postos de trabalho da empresa. O projeto deve considerar o acesso de jovens negros e negras a vagas de trainees, estágio, aprendizagem, entre outras, inclusive no âmbito da produção cultural e artística, escola de atores, jornalismo e todos os demais setores da empresa. Poderá utilizar o denominado "recrutamento às cegas", bem como exercer busca ativa junto às empresas de recrutamento específico de profissionais negros e negras, principalmente nas universidades, escolas técnicas e escolas públicas;
10. Abster-se de reproduzir situações de representações negativas ou estereótipos da pessoa negra que sustentam as ações de negação simbólica e as diversas formas de violência, bem como reconhecer e valorizar a história e a cultura negra em suas formas de existência e resistência;
11. Garantir o acesso da população negra ao emprego/trabalho na empresa, em funções e ocupações em todos os níveis hierárquicos, nos diferentes setores e funções, em relação a trabalhadores empregados ou que mantenham outras formas de vínculo, inclusive nos programas de televisão atualmente veiculados pela emissora, garantindo a participação de atores e atrizes negros e negras em papéis protagonistas;
12. Assegurar a participação de atores e atrizes negros e negras em novelas e programas, dentre outros produtos, a fim de propiciar a representação da diversidade étnico-racial da sociedade brasileira, especialmente em cenários de população predominantemente negra, como no caso da novela "Segundo Sol", em que deverá fazer adequações necessárias no roteiro/produção, para observância dos princípios orientadores do Estado Democrático de Direito, entre estes a proibição de discriminação (artigos 3º e 5º da CRFB/88), traduzida de forma específica em relação às produções dos meios de comunicação nos artigos 43 e 44 da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 – Estatuto da Igualdade Racial;
13. Adotar metas progressivas para contratação de trabalhadores (inclusive aprendizagem) que projetem a proporção de trabalhadores negros da PEA (População Economicamente Ativa), considerando-se o nível de escolaridade mínima porventura requerido para ingresso na empresa, em cada cargo;
14. Abster-se, por quaisquer de seus representantes, sócios, administradores, gerentes ou pessoas que detenham poder hierárquico, de adotar, admitir ou tolerar qualquer ato ou conduta que possa ser caracterizado como prática discriminatória contra o trabalhador negro.
A íntegra da notificação recomendatória pode ser lida aqui.
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Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
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