Entrevista histórica com Galvão foge do óbvio e lembra "ligações perigosas"
Mauricio Stycer
29/04/2019 05h01
Como qualquer pessoa que gosta de esportes e de televisão, acompanho Galvão Bueno com interesse há muito tempo. E sempre me chamou a atenção a dificuldade de todos que o entrevistam de tirá-lo do roteiro que ele próprio estabeleceu para falar de si e do seu trabalho. Muito eloquente e vaidoso, o narrador costuma dominar a situação e só dizer o que tem interesse.
Cito quatro casos mais ou menos recentes. Em 2013, Jô Soares dedicou um programa inteiro a Galvão e conseguiu fazer um único comentário surpreendente ao ironizar o talento "mediúnico" do narrador. Em 2015, Ingo Ostrowsky assinou junto com o narrador a autobiografia "Fala, Galvão!" cuja maior surpresa foi reconhecer que a gritaria na comemoração do tetra em Pasadena foi "meio ridícula". No ano seguinte, Marcelo Adnet apostou todas as suas fichas em Galvão como o primeiro entrevistado do "Adnight" e o programa, exageradamente roteirizado e ensaiado, foi uma decepção completa. Já em 2018, no "Conversa com Bial", o narrador nadou de braçada, ajudado por um entrevistador deslumbrado e, aparentemente, tendo conhecimento sobre tudo que lhe seria perguntado.
Por isso, a entrevista concedida por Galvão ao programa "Grande Círculo", no SporTV, exibida no fim da noite de sábado (27), pode ser considerada histórica. Comandada pelo narrador Milton Leite, a conversa teve a duração de 85 minutos e inúmeros momentos reveladores. Em mais de uma situação, Galvão foi pressionado e, constrangido, teve que falar de temas que o desagradam, como a sua relação de proximidade com Ricardo Teixeira, a amizade com J. Hawilla, o excesso de intimidade com Ayrton Senna e a dificuldade em ouvir "nãos".
O também narrador Gustavo Villani quis saber se procedia a informação de que Armando Nogueira (1927-2010) queria que Galvão narrasse os jogos do Brasil na Copa de 1986, mas José Bonifácio de Oliveira Sobrinho optou por Osmar Santos. "Cara, vocês me pegaram. Não tava combinado, não", reagiu Galvão à pergunta. Milton Leite rapidamente observou: "Até porque aqui a gente não combina". E Galvão: "Eu sabia que vinha alguma coisa, mas logo de cara essa?"
O narrador confirmou que a história é verdadeira e reconheceu ter ficado muito decepcionado com a escolha de Boni. Tanto que, disse, decidiu deixar a Globo depois da Copa. "Eu avisei pra eles o seguinte: 'Tá bom. Vou fazer a Copa, mas quando terminar, vou embora'. Depois, nós negociamos e eu acabei ficando. Mas negociei sério pra sair. Mas o bom senso acabou prevalecendo e acabei permanecendo".
Em resposta a uma pergunta de Renata Fan, Galvão explicitou a dificuldade que tem de ser contrariado. O narrador contou que deixou de narrar corridas de Stock Car por determinação de Marco Mora (1946-2018). O então diretor da Central Globo de Esportes considerava inadequado Galvão narrar competições que o próprio filho (Cacá Bueno) disputava.
"Eu sempre escutei o que o Marquinhos falava. Não gostei, mas ficou por isso mesmo", reconheceu. "Tanto não ficou tão bem resolvido isso que, confesso a vocês, outro dia tive uma conversa com a Joana (Thimoteo), a nossa nova diretora de eventos aqui, e disse: 'Joana, tô com vontade de narrar umas corridinhas de Stock, o que você acha?' E ela: 'Eu dou a maior força'."
Um bom momento da entrevista coube a Tino Marcos. Mais do que a resposta de Galvão, a pergunta do repórter foi muito reveladora. Disse ele:
"A gente estava junto, nos anos 80, e eu te perguntei: 'Galvão, você já é o principal narrador da maior emissora do país. O que você tem como meta? O que você tem como desafio?' Era uma curiosidade que eu tinha e nunca esqueci a sua resposta. Você me disse: 'Quero fazer cada vez mais do modo que eu acho que deve ser feito e não do modo que me imponham ser feito'. E eu te pergunto agora: 'Isso se materializou? Hoje em dia, alguém, diante de um Galvão Bueno tão grande como é, com a estatura que tem o Galvão Bueno para o Brasil, para a Globo, pra todos nós, alguém diz 'não' para você, Galvão?"
O narrador fez cara de surpresa e respondeu: "Diz, lógico, né! Um 'não' você sempre escuta, mas não é com frequência". E não se prolongou, preferindo falar sobre como quebrou regras nas transmissões esportivas da Globo, que eram muito engessadas. "A Globo é a minha vida. Tenho 45 anos de profissão, tenho 38 anos de Globo. A Globo é a minha vida. Foi uma coisa que me orgulho muito de ter conseguido", disse.
Villani também fez uma ótima pergunta, questionando de forma muito educada se Galvão não se arrepende de ter cultivado relações de muita proximidade com figuras que eram objeto de suas narrações, como Ayrton Senna (1960-1994).
"Imagino que tenha sido um preço alto narrar a morte dele ao vivo, depois a cobertura, teve rusga até com Reginaldo Leme tendo Ayrton no meio, críticas ácidas do Piquet… Valeu a pena? E mais: Você faria de novo? Teria essa mesma relação tão próxima com um personagem objeto do seu trabalho? Relação pessoal e profissional?", questionou Villani.
Galvão não entendeu a pergunta ou não quis responder. Pois disse: "Aconteceria. Porque essas coisas você não procura. Elas acontecem. Hoje eu tenho uma ligação muito forte com o Felipe Massa. Essas coisas acontecem. Não é 'eu vou ficar amigo de fulano'. No caso do Ayrton e no caso de grandes amigos que tenho no futebol, grandes estrelas, como Falcão, Júnior, Zico, Casão, Cerezo, Pelé, acima de todos, é muito uma questão de geração e idade. Não posso pretender ser um grande amigo do Neymar, do Philippe Coutinho. Tenho idade para ser pai da maioria deles, e avô de alguns deles. São mundos diferentes."
Tino Marcos aproveitou o tema levantado por Villani para fazer a pergunta mais importante da entrevista. Medindo muito as palavras, o repórter lembrou das "ligações perigosas" de Galvão com Ricardo Teixeira e J. Hawilla (1945-2018), ambos acusados de inúmeros negócios escusos no mundo do futebol. Fala Tino:
"Só pegando este gancho das relações ao longo destes anos todos, suas com os personagens do esporte. Por você ser o que sempre foi há tantas décadas, faz com que você se aproxime de figuras como o Ayrton, como o Massa, como tantos jogadores, mas também fez com que você se aproximasse de pessoas com idades mais semelhantes e que fazem parte da parte diretiva do futebol. E aí tem certas ligações perigosas, digamos assim. Você teve relação próxima, não sei se posso dizer amigo, você conviveu e ele confiava muito em você, o Ricardo Teixeira, por exemplo, o J. Hawilla…"
Galvão interrompeu Tino nesta hora e disse: "Não cheguei a ser amigo do Ricardo Teixeira. Tive um relacionamento bastante grande com ele. O Hawilla, não. O Hawilla fui amigo mesmo…"
Tino explicou, então, quem foi Hawilla e perguntou: "Como é ficar nesse meio-campo? Qual é o tom que você teve? Você se arrepende de alguma coisa? Você se aproximou demais de alguém? Ou não? Gostaria de ter se descolado de alguém com quem você se aproximou?"
Medindo as palavras, Galvão disse: "Talvez tenha me aproximado um pouco demais de pessoas que me decepcionaram. Alguns dirigentes… O Ricardo é um deles."
"Algum dessa foto aí?", quis saber Milton Leite, exibindo a foto acima. Galvão se virou para analisar a imagem e disse:
"Ih, rapaz!!! Essa foto é de um jantar na casa do José Vitor Oliva… Dali, o Zé Vitor continua meu amigo, Luciano (Huck) continua meu amigo, o Fenômeno (Ronaldo) continua meu amigo, sem dúvida. Nunca tive muito relacionamento com o Andres (Sanches), nunca tive amizade com o Andres. Não diria que tive uma amizade com o Ricardo, tive um relacionamento diria até mais próximo do que deveria ter tido. O Hawilla, não. O Hawilla nós começamos juntos".
Galvão falou, então, de sua relação com o empresário: "Já doente, na fase em que ele não podia voltar ao Brasil, em lágrimas, ele me disse: 'Me arrependo profundamente de muita coisa que fiz. Se pudesse recomeçar, teria feito muita coisa diferente. Mas eram as regras do jogo. Eu segui as regras do jogo'. As regras o que eram?", perguntou o narrador. E ele mesmo respondeu:
"As regras do jogo existem desde que o intendente chegou com D. João em 1808 no Brasil, e estabeleceu que 10% de todas as compras da Corte eram dele. Ao mesmo tempo, não vou à CBF há muito tempo. Às vezes, me arrependo de uma certa proximidade, sim. Eu disse ao atual presidente da CBF (Rogerio Caboclo) que ele tem uma chance única. 'Você tem a chance de mudar as coisas, de fazer uma gestão transparente, correta, sem espaço para toda aquela, vamos falar a palavra certa, daquela roubalheira que teve durante tantos e tantos anos. E não só na América do Sul, não. Na Concacaf, nos EUA, na Europa'."
Sergio Rodrigues evocou um episódio curioso, no qual Galvão narrou uma partida entre Flamengo e Campo Grande exclusivamente para Roberto Marinho (1904-2003). O narrador contou: "A secretária dele ligou pra redação de Esportes e disse: 'Doutor Roberto tá querendo saber se vai ter transmissão'. Imediatamente, disseram: 'Claro'. Eu estava em casa. Disseram: 'Vai para o Maracanã'. A Globo ia gravar o jogo inteiro, pra ter o Globo Esporte, melhores momentos. Foi pro doutor Roberto e fiz com muito orgulho, muito orgulho."
E revelou, querendo deixar bem claro o tamanho deste orgulho: "Tenho prêmios, praticamente tive a felicidade de ganhar todos. Meu maior prêmio é quando o doutor Roberto se referia mim como 'o meu speaker' ('o meu narrador'). Não tem preço."
Ao falar sobre a Copa de 2002, em que a Globo teve uma série de privilégios e acesso facilitado à seleção brasileira, Galvão contou como estabeleceu uma relação de cumplicidade com Felipão. Disse que o técnico o procurou, antes da estreia contra a Turquia, pedindo para que o narrador não desse a entender, no "Jornal Nacional", que o Brasil teria um adversário fácil.
Segundo Galvão, ele disse ao técnico: "Não é ético a gente fazer um acordo do que eu vou falar no 'Jornal Nacional'. Mas já entendi o que você quer e eu concordo com você. Acho que cabe". Na coletiva antes do jogo, o narrador pediu para fazer uma pergunta, o que não tinha o hábito de fazer: "Felipão, estou muito preocupado. Este time da Turquia é muito bom. Eles marcam bem demais. Tá todo mundo achando que vai ser uma moleza. Estou preocupado".
"Ali passou a existir uma cumplicidade, que durou a Copa toda. Não teve privilégios, não teve nada", concluiu o narrador.
Por fim, contrariando as inúmeras promessas de aposentadoria feitas nos últimos anos, Galvão disse que não pretende parar. Nunca.
"Eu tenho uma paixão pelo que eu faço. O Chacrinha, Velho Guerreiro, dizia assim: 'Quero morrer no palco'. Ele muitas e muitas vezes falou isso. Eu quero ir até o último dia se puder. Eu quero ir até o último dia se puder porque tem duas coisas que são fundamentais na minha vida: o amor pela minha família e o amor pela minha profissão. Eu amo demais o que eu faço. São 45 anos, eu lembro de cada momento, de cada alegria, de cada tristeza. Enquanto eu tiver saúde, enquanto Deus permitir, eu, como dizia um outro amigo querido, Zagallo, vão ter que me aturar".
Por iniciativa de Paulo Soares, que puxou a salva de palmas, Galvão terminou a entrevista aplaudido por todos os entrevistadores. Merecido.
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Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
Contato: mauriciostycer@uol.com.br
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