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Documento inédito apresenta nova versão sobre a criação do Jornal Nacional

Mauricio Stycer

01/09/2019 05h01

Cid Moreira e Hilton Gomes, os primeiros apresentadores do JN

Quem criou o "Jornal Nacional"? De quem foi a ideia? Como nasceu? Cinquenta anos depois, acredite se quiser, ainda há versões conflitantes sobre a origem do principal telejornal da televisão brasileira. Um documento inédito, obtido pelo UOL, acrescenta novas informações a este imbróglio.

A versão mais conhecida foi divulgada em 1991 por Walter Clark (1936-1997), no seu livro de memórias, "O Campeão de Audiência", escrito com o jornalista Gabriel Priolli. Principal executivo da Globo em 1969, ele diz no livro que Armando Nogueira (1927-2010), então diretor de jornalismo, "que hoje aparece como criador do Jornal Nacional, foi quem mais resistiu a ele".

O americano Joe Wallach, outro executivo importante da Globo no final dos anos 1960, diz exatamente o contrário em seu livro de memórias, "Meu Capítulo na TV Globo", publicado em 2011: "A grande liderança na criação e expansão do Jornal Nacional era Armando Nogueira, que dirigiu o jornalismo da TV Globo a partir de 1966".

A visão de Wallach é reiterada no livro "Jornal Nacional: 50 anos de telejornalismo", que está sendo lançado este mês. Na apresentação, Carlos Henrique Schroder, atual diretor-geral da emissora, escreve: "A criação do JN foi obra da dupla Armando Nogueira e Alice-Maria, uma mulher que imprimiu, atrás das câmeras, um estilo ao jornal e moldou nossa reportagem."

Uma terceira versão é apresentada por Jose Bonifácio de Oliveria Sobrinho, o Boni, que na época era subordinado a Walter Clark. No "Livro do Boni", publicado também em 2011, ele diz que Armando Nogueira batalhou pelo projeto. Segundo Boni, as afiliadas queriam que as suas reportagens fossem apresentadas por seus próprios locutores, dos seus estúdios. Já Armando insistia que elas enviassem as matérias para a sede da Globo, onde seriam lidas pelos apresentadores do JN.

"O Walter e o Arce (Jose Ulisses Arce, superintendente de comercialização) entendiam que o Armando era contra o JN. Não era nada disso. Armando e eu queríamos apenas levar o projeto a sério. E nossa tese prevaleceu. Os afiliados concordaram em fazer uma experiência".

Morto em 2010, Armando Nogueira deu alguns depoimentos sobre este processo de criação, mas nenhum é tão cristalino quanto o encontrado pelo jornalista Paulo Cezar Guimarães, que está pesquisando para escrever a sua biografia. PC, como é conhecido, teve acesso a uma carta escrita por Armando a um colega da Globo (trecho acima), na qual ele apresenta uma quarta versão a esta história.

"A história do nascimento do Jornal Nacional é a seguinte: não tive a menor participação na fase de concepção do programa. Imagino que a ideia tenha fecundado no mais alto escalão da Globo. Digamos, na sala do Walter Clark, onde se reuniam o próprio Walter, o Boni, o Wallach, o Arce e, às vezes, o Zé Octávio (o executivo José Octávio Castro Neves). Enquanto eles discutiam a estratégia de lançamento, eu ia cuidando de preparar a mini-equipe do futuro JN. Ninguém nunca me ouviu sobre a ideia.

Não tem, portanto, o mais leve fundamento a versão dada por WC (Walter Clark) em seu livro de que, inicialmente eu teria sido contra o projeto. A verdade é que eu, ao contrário, vivia soltando foguetes de alegria pela chance de fazer um jornal de dimensão nacional. Seria a redenção de um tele-jornalismo que se arrastava sem verba, sem apoio, sem prestígio".

Outra polêmica: o patrocínio do Banco Nacional

Na sequência da carta, Armando tenta esclarecer uma outra polêmica sobre o nascimento do telejornal – o patrocínio do Banco Nacional (fundado em 1944, liquidado em 1995). Muita gente acredita que o nome do programa da Globo foi escolhido por exigência do banco.

Telejornais patrocinados por empresas e produzidos por agências de publicidade eram uma prática comum nos anos 1960. O "Repórter Esso", na Tupi, e o "Ultranotícias" (da Ultragaz e Ultralar), na Globo, eram produzidos pela agência de publicidade McCann Erickson.

Escreve Armando: "Só posso atribuir a versão do WC a uma confusão mental do ilustre personagem. Eu fui contra, sim, mas contra a que se vendesse o patrocínio do jornal a patrocinador com o mesmo nome do programa. Ali, o Jornal ainda não tinha parceria com qualquer anunciante. Por simples questão de credibilidade. Coisa que me dava muita alegria. Afinal, estávamos saindo de um modelo de parceria em que o patrocinador, a Ultragás, tinha uma presença ostensiva, não só visualmente, no cenário, como na própria orientação do jornal que se chamava Ultranotícias. Um horror".

Segundo Armando, "o Banco Nacional só surgiria tempos depois". Já segundo Boni, foi no dia seguinte ao lançamento do telejornal. "O sucesso foi tão grande e imediato que no dia seguinte o Banco Nacional, identificando uma possibilidade de associar a sua marca ao Jornal Nacional, quis patrocinar o JN em todo o Brasil e pagar todos os custos".

Ainda sem título, a aguardada biografia de Armando Nogueira que PC Guimarães prepara será publicada em 2020, dez anos após a morte do jornalista, pela editora Grypus.

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Algumas curiosidades

. O Ultranotícias foi ao ar entre 3 de janeiro de 1966 e 28 de fevereiro de 1967. Inicialmente, eram dois boletins de segunda a sábado, um de cinco minutos, às 15h, e outro com 15 minutos, às 19h45. Os apresentadores eram Paulo Gil (primeira edição), e Hilton Gomes e a atriz Irene Ravache (segunda edição).

. O Ultranotícias foi substituído pelo Jornal da Globo, apresentado por Luís Jatobá e Hilton Gomes, exibido às 19h30. O editor-chefe era o crítico musical Jose Ramos Tinhorão. Estreou em março de 1967 e ficou no ar até 31 de agosto de 1969, quando foi substituído pelo Jornal Nacional.

. Originalmente, o JN tinha 15 minutos de duração. Ia ao ar às 19h45. Na sequência, às 20h, era exibida uma novela – daí ter ficado conhecida como a novela das 8.

. O livro "Jornal Nacional – a notícia faz história", publicado em 2004, por ocasião dos 35 anos do telejornal, traz os nomes de alguns dos 30 profissionais da primeira equipe. Além dos apresentadores Hilton Gomes e Cid Moreira, são citados Humberto Vieira (editor-chefe e editor internacional), Alice Maria Tavares Reiniger e Silvio Julio Nassar (editores nacionais), Amaury Monteiro e Aníbal Ribeiro (chefes de reportagem), Alfredo Marsillac (diretor de imagens), Chucho Narvaez, José Andrade, Sebastião Azambuja, Evilásio Carneiro e Orlando Moreira (cinegrafistas), Auderi Alencar (montador), Jotair Assad e Guaraci José Vieira (coordenadores).

. O "Jornal Nacional" já foi objeto de quatro livros oficiais: "15 Anos de História" (1984), de Claudio Mello e Souza, "Jornal Nacional: A notícia faz história" (2004), "Jornal Nacional: modo de fazer" (2009), de William Bonner, e "Jornal Nacional: 50 anos de telejornalismo" (2019).

. Vários estudos independentes já tiveram o JN como tema, a maior parte deles de origem acadêmica. Alguns títulos publicados: "Muito além do Jardim Botânico: um estudo sobre a audiência do Jornal Nacional da Globo entre trabalhadores" (1985), de Carlos Eduardo Lins da Silva; "Jornal Nacional – Política e Ideologia" (2008), de Antonio Sá; "Paroxismo do Sonho: Um Estudo Sobre a Exclusão Social no Jornal Nacional" (2009), de Rita de Cássia Aragão Matos; "A Cobertura Internacional do Jornal Nacional: correspondentes, enviados especiais e usos de tecnologias" (2014), de Carolina Cavalcanti.

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

Sobre o blog

Um espaço para reflexões e troca de informações sobre os assuntos que interessam a este blogueiro, da alta à baixa cultura, do esporte à vida nas grandes cidades, sempre que possível com humor.