Apesar da audiência morna, “Saramandaia” foi uma novela notável
Ricardo Linhares foi muito feliz com sua adaptação de "Saramandaia" de Dias Gomes – a novela da faixa das onze da noite da Globo, que terminou nesta sexta, 27/09. Ele tomou a história original e manteve a sua essência, sem descaracterizá-la, apenas modernizando-a, trazendo tramas e personagens para os dias atuais com o mesmo vigor. E assim costurou outra novela, tão rica quanto a original.
Assim como Dias construía um microcosmo do Brasil em suas cidades fictícias (Bole-Bole de "Saramandaia", Sucupira de "O Bem Amado", Asa Branca de "Roque Santeiro"), também Linhares desenvolveu muito bem esta ideia com a Bole-Bole atual. Usar a telenovela para fazer o telespectador refletir sobre as mazelas de nossa sociedade é um artifício nobre. Dias fazia como ninguém. E Linhares cumpriu seu objetivo a contento.
O momento político atual se fez presente em "Saramandaia". Se em 1976, a trama fez uma metáfora com a ditadura do Regime Militar que assolava o país, atualmente pudemos reconhecer na história da novela o escândalo do Mensalão e as manifestações populares que tomaram conta de nossas ruas entre junho e julho deste ano.
Muito mais do que levantar a questão política, o grande mérito de Ricardo Linhares foi usar com muita propriedade o realismo fantástico dos personagens para discutir a intolerância a tudo o que é diferente ou fora da normatividade imposta pela sociedade. Os progressistas que defendiam a mudança do nome da cidade para Saramandaia reivindicavam muito mais do que isso – clamavam pela liberdade de serem diferentes do que é julgado como o normal pela maioria.
João Gibão (Sérgio Guizé) e o Professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes), baluartes deste movimento, cansaram de viver à margem e "saíram do armário" – expressão fartamente usada na novela que traça um paralelo pertinente com a atual questão gay. Homossexualidade tratada com perspicácia, sem didatismo e sem a necessidade de beijo gay.
Afora as questões sociais, "Saramandaia" já valeria pela mistura de apuro técnico (efeitos especiais dignos de produções hollywoodianas) com beleza estética "timburtoniana", o que proporcionou alguns momentos emocionantes, de pura fantasia e bom gosto, como o voo de Gibão com sua amada Marcina (Chandelly Braz), a transformação do casal Candinha e Tibério (Fernanda Montenegro e Tarcísio Meira) em árvore, e até a explosão de Dona Redonda (Vera Holtz) e as transformações de Aristóbulo em lobisomem.
Pena que a audiência não acompanhou – ou não pôde acompanhar: o horário ingrato pode ter sido um dos vilões (raramente a novela foi apresentada antes das 23h30). A trama fecha com uma média de 15 pontos no Ibope da Grande São Paulo, considerada modesta quando comparada com a das produções dos anos anteriores ("Gabriela" e "O Astro", 19). Por um momento, no início da trama, a história priorizou o romance maduro e insosso entre Zico Rosado e Vitória Vilar (José Mayer e Lília Cabral), o que pode ter afastado o telespectador. A novela melhorou quando as discussões políticas e as esquisitices dos moradores de Bole-Bole passaram a ser o centro das atenções.
Bem conduzida (direção geral de Denise Saraceni e Fabrício Mamberti) e com um elenco estelar – com destaque para Sérgio Guizé, José Mayer, Vera Holtz, Matheus Nachtergaele, Gabriel Braga Nunes, Débora Bloch, Fernanda Montenegro e Aracy Balabanian. "Saramandaia" termina como uma novela notável, pela proposta e pelo que exibiu. São Dias deve ter abençoado.
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