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"Orgulho e Paixão" inaugurou um novo tipo de dramaturgia: a "novela Disney"

Nilson Xavier

24/09/2018 19h05

Nathalia Dill e Thiago Lacerda (reprodução)

Nunca uma produção da TV brasileira se aproximou tanto do que convencionou-se qualificar como "Disney", em referência ao estilo perpetuado pela famosa produtora de cinema. A novela das seis da Globo, "Orgulho e Paixão" (finalizada nesta segunda, 24/09), foi a que mais características reuniu sobre um tipo de dramaturgia e um padrão de produção que há décadas cativa plateias do mundo todo, no cinema e televisão.

A fórmula é simples: fantasia e entretenimento em uma estética colorida, com doses de romance, comédia, música e aventura. O mundo é idealizado, não há compromisso com a realidade e, de repente, a vida pode virar um musical. O maniqueísmo impera: os bons são bons demais e os maus, maus demais. No final, o bem triunfa, a felicidade é potencializada, o mal paga e sempre há espaço para a redenção dos malvados.

Os mocinhos são bravos e corajosos, como os príncipes de contos de fadas. As mocinhas, bem, são como as princesas, ou você nunca percebeu que cada uma das irmãs Benedito parece uma "princesa Disney"? Os vilões são caricaturas do mal, muito próximas dos vilões de desenhos animados: Susana = Dick Vigarista, Petúlia = Muttley, Xavier = Tião Gavião. O que dizer de Lady Margareth, uma perfeita bruxa de conto de fadas, com direito a gargalhada malévola.

As Irmãs Benedito vs. as Princesas Disney (divulgação)

Isto não é uma crítica, mas a constatação de um estilo assumido pela novela e prontamente absorvido pelo público, haja vista a repercussão da trama. "Orgulho e Paixão" fecha com uma média final de 21,5 pontos de audiência no Ibope da Grande SP, dentro do esperado no horário – ainda que inferior às duas últimas produções, "Tempo de Amar" (22,5) e "Novo Mundo" (24).

Apesar do convite ao escapismo, a novela tentou um diálogo com temas contemporâneos. Por não haver compromisso com a realidade, a trama de "Orgulho e Paixão", ambientada na década de 1910, teve um forte discurso atual que extrapolou os limites da época retratada. O melhor exemplo está na protagonista Elisabeta (Nathalia Dill): definida como "uma mulher à frente de seu tempo", suas falas e atitudes eram de uma moça contemporânea.

Como escrevi em crítica publicada em agosto, uma mulher de 1910 "à frente de seu tempo" pensaria com a cabeça uns 30, 40 anos adiante. Mas com a cabeça mais de um século depois? Porém, assumiu-se que Elisabeta era uma personagem surrealista: ao final, foi transformada em super-heroína (quase com super poderes). Para além do discurso politicamente correto, a protagonista muitas vezes ultrapassou a linha tênue que descamba para a chatice. No início falastrona, briguenta e mal-educada, foi podada a tempo de não resvalar na mocinha chata.

Parte do elenco (reprodução)

Outro ponto a destacar: ao mostrar a liberdade sexual da maioria das personagens femininas, o roteiro desconsiderou a moral da época retratada. São licenças poéticas permitidas neste tipo de produção, afinal, trata-se de uma fantasia (não de um documentário sobre o comportamento da mulher nos anos 1910) que assumiu um compromisso com a atualidade.

A direção artística de Fred Mayrink apresentou um belíssimo trabalho de concepção e realização, com cenários, figurinos e arte de tirar o fôlego. Tanto a direção de atores como as das cenas atingiram plenamente o exigido pelo roteiro. Aliás, sensacional e bem realizada a sequência do trem nos penúltimo e último capítulos – absurda, como nos filmes de aventura e desenhos de animados, mas dentro da proposta da novela.

Sororidade, feminismo, racismo, homossexualidade e preconceito social foram abordados com o olhar atual que esse tipo de discussão demanda. O primeiro beijo gay em uma produção das seis da Globo apresentou o permitido no horário, com bom gosto e sutileza. A abordagem foi além: didática na medida certa – com destaque para a interpretação dos atores Juliano Laham (Lucino) e Pedro Henrique Müller (Otávio). O drama dos personagens conquistou as redes sociais e a torcida do público (#Lutavio)

Ary Fontoura | Gabriela Duarte (reprodução)

Elogios às atuações irrepreensíveis de boa parte do elenco, em especial a Ary Fontoura, que há uns dez anos não tinha em mãos um personagem tão bom, o irresistível ranzinza Barão de Ouro Verde; a Gabriela Duarte, de volta às novelas com uma personagem que caiu nas graças do público; à dupla vivida por Grace Gianoukas e Alessandra Negrini – Petúlia e Susana, uma reedição dos picaretas Muttley e Dick Vigarista; a Agatha Moreira e Rodrigo Simas, talentosos atores esbanjando carisma; a Vera Holtz em mais um tipo marcante; e a Christine Fernandes e Tammy Di Calafiori, no retorno à Globo em personagens bem defendidos.

No entanto, um deslize que merece citação: o mau aproveitamento dos atores Tato Gabus Mendes, Murilo Rosa e Letícia Persiles, em personagens que renderam muito pouco ou aquém de suas possibilidades.

O elogio maior vai a Marcos Bernstein, o autor, por ter conduzido uma trama movimentada, que em momento algum perdeu o fôlego, mantendo o público cativo a uma história que experimentou várias narrativas (comédia, aventura, ação, suspense, romance, drama, musical).

Alessandra Negrini | Grace Gianoukas (reprodução)

Ressalto a capacidade inventiva de Bernstein, roteirista de filmes díspares como "Central do Brasil" (com João Emanuel Carneiro), "O Outro Lado da Rua" (com Melanie Dimantas), "Zuzu Angel" (com Sérgio Rezende), "Chico Xavier", "Meu Pé de Laranja Lima" (com Melanie Dimantas, o qual também dirigiu) e "Faroeste Caboclo" (com Victor Atherino), da novela de aventura "Além do Horizonte" (com Carlos Gregório, mal sucedida na audiência), da série "A Cura" (com João Emanuel Carneiro) e colaborador da novela "A Vida da Gente" (de Lícia Manzo).

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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