Há 50 anos, Beto Rockfeller nacionalizou e revolucionou a nossa telenovela
Nilson Xavier
07/11/2018 07h00
O modelo de telenovela brasileira que você conhece hoje nasceu há exatamente 50 anos, com a estreia de "Beto Rockfeller", na TV Tupi, em novembro de 1968. Um "divisor de águas" no gênero. Todas as bibliografias são unânimes: a novela brasileira se divide entre antes e depois de "Beto Rockfeller".
Tratava-se do auge do processo de nacionalização da nossa teledramaturgia, iniciada timidamente com algumas produções anteriores. "Beto Rockfeller" deu início a um novo formato que passou a ser seguido pelas demais emissoras. A Globo, por exemplo, aderiu ao estilo ao demitir a cubana Glória Magadan, até então responsável pela dramaturgia da emissora, com suas histórias melodramáticas e fantasiosas baseadas no modelo latino, que nada tinham a ver com a realidade brasileira.
"Beto Rockfeller" abandonava a linha de atitudes dramáticas e artificiais que acompanhavam as novelas desde que o gênero havia chegado por aqui. O tom coloquial dos diálogos rompia com os padrões estabelecidos até então. Todavia, só mesmo com o trabalho de criação e o posicionamento de modernizar a linha da telenovela foi possível adaptar o público às novas exigências. Não só os diálogos mudaram. Tudo passou por uma renovação – a estrutura da história principalmente.
O maniqueísmo vigente encontrou seu contraponto no protagonista. Beto, o anti-herói, vivido por Luiz Gustavo, assumiu os postos até então ocupados por personagens de caráter firme, sensatos, absolutamente honestos e capazes de qualquer proeza para salvar a mocinha das adversidades. A sua concepção procurava se aproximar das pessoas comuns, isto é, ter as atitudes boas ou más conforme se apresenta a vida.
Um dos méritos da novela foi dar ao público uma fantasia com gosto de realidade. As notícias que andavam nos jornais da época faziam parte de sua trama e eram comentadas por seus personagens. Houve inovação também na forma de gravar, com externas em locais verdadeiros de São Paulo. Antes, pouco se ultrapassava os limites dos estúdios.
"Beto Rockfeller" revolucionou até o modelo de interpretação dos atores, que passou dos exagerados gestos dramáticos para uma forma natural. A linguagem era coloquial, os diálogos incorporavam gírias e expressões do cotidiano. Isso fazia com que o público se identificasse com a história. Muitas vezes, os atores improvisavam suas falas, inventando diálogos que não estavam no roteiro, o que também era novo na TV. A direção não se restringiu apenas a marcar os atores em função da câmera. O despojamento dessa marcação provocou a libertação dos atores, no sentido de fazer um trabalho artístico também na televisão.
A ideia inicial da novela foi do então diretor artístico da Tupi, Cassiano Gabus Mendes. O protagonista surgiu na boate paulistana Dobrão, que pertencia a Cassiano. Uma menina da alta sociedade comemorava lá seu aniversário, quando, de repente, entrou um camarada com roupa descolada, pegou flores do balcão, deu para a aniversariante – que era lindíssima -, tirou-a para dançar e, no final, acabou levando a moça embora.
Luiz Gustavo, cunhado de Cassiano, relembrou: "Perguntei para um amigo quem era o cara. Acredita que ninguém conhecia? Falei para o Cassiano: 'Era um bicão!' e ele: 'Bicão não, ele é um puta personagem!". ("Antes e Depois de Beto", Alline Dauroiz, O Estado de São Paulo, 15/11/2008).
Com a ideia do personagem na cabeça, Cassiano foi atrás do autor. Bráulio Pedroso, ex-editor do caderno de literatura do Estadão, estava na pior, sem dinheiro depois de um acidente de carro. Logo aceitou o desafio. Mas como Bráulio era um homem do teatro e pouco entendia sobre televisão, seus textos eram adaptados pelo diretor da novela, Lima Duarte. Cassiano, Bráulio e Lima estavam por trás de uma trama simples, mas que mostrava nova proposta de trabalho para a televisão brasileira.
Sobre a identidade do protagonista, Cassiano Gabus Mendes, Luiz Gustavo e Bráulio Pedroso sabiam que o nome precisava ser curto e remeter a algo meio nobre, para um malandro cheio de ginga que sempre teria uma boa sacada para os imprevistos. Não demorou muito para chegarem a "Beto". Mas o sobrenome exigiu um pouco mais de atenção. "Onassis" e "Rothschild" foram propostos por Luiz Gustavo, e "Rockfeller" foi o tiro certeiro de Cassiano. ("Biografia da Televisão Brasileira", de Flávio Ricco e José Armando Vannucci).
Outra inovação foi a trilha sonora, que deixou de trazer temas sinfônicos tocados por orquestras e utilizou sucessos populares de artistas da época, como Erasmo Carlos, Luiz Melodia, Beatles, Rolling Stones, Bee Gees e Salvatore Adamo. A identificação do público com personagens e seus temas musicais começou com "Beto Rockfeller". No entanto, uma trilha sonora "oficial" da novela nunca foi lançada comercialmente.
Mas nem tudo foi perfeito em "Beto Rockfeller". O sucesso fez com que a emissora espichasse a novela e Bráulio Pedroso, em grande estafa, abandonou provisoriamente a sua obra (foi substituído por três autores liderados por Eloy Araújo). Lima Duarte também ausentou-se, sendo substituído na direção por Wálter Avancini. Alguns atores tiraram férias, e muitos dos capítulos eram preenchidos com qualquer criação de emergência: um grupo de jovens dançando numa festinha, um personagem caminhando indeciso ou então uma determinada ação, sem diálogos, era acompanhada por alguma música da trilha. Com uma mudança tão radical, a novela poderia perder audiência, o que não aconteceu.
O esquema de produção em cima da hora, as longas jornadas de trabalho, as cansativas externas, o estúdio improvisado e o atraso no pagamento foram gerando cada vez mais estresse no elenco e muitos atores começaram a pedir para sair da novela.
"Ela foi longa e no final já estávamos cansados, querendo que terminasse logo", desabafou a atriz Ana Rosa.
O próprio Luiz Gustavo pediu férias e os autores foram obrigados a justificar a saída de Beto, colocar boa parte da carga dramática em Neide (irmã do protagonista, vivida por Irene Ravache) e criar cenas para preencher o tempo. ("Biografia da Televisão Brasileira", de Flávio Ricco e José Armando Vannucci).
Tudo o que foi válido serviu de base para as novelas do futuro. Até mesmo as improvisações dentro da falta de organização da época servem de modelo até hoje. Mas, no fundo, se as novelas revolucionavam na sua fórmula, seu conteúdo era mantido o mesmo. Um vaivém em busca da audiência.
Em 1970, no rastro do sucesso da novela, foi lançado o filme "Beto Rockfeller", dirigido por Olivier Perroy, protagonizado pelo ator-personagem Luiz Gustavo – mas sem repercussão. Em 1973, Bráulio Pedroso escreveu uma continuação da novela: "A Volta de Beto Rockfeller", com parte do elenco original. Não conseguiu a repercussão esperada, mas também não comprometeu o personagem.
Hoje, não existem mais os capítulos da novela. O pouco que sobrou de suas filmagens está guardado na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Quase todos os capítulos foram apagados pela própria Tupi, que usava as fitas para gravar por cima os capítulos seguintes. A Tupi já passava por dificuldades financeiras e todos os projetos que apareciam tinham de ser feitos com baixos custos, mas que trouxessem lucros para a emissora. Nada muito diferente de hoje em dia, 50 anos depois.
AQUI tem tudo sobre "Beto Rockfeller": trama, elenco completo, personagens e mais curiosidades.
Fotos: divulgação.
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Sobre o autor
Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.
Sobre o blog
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.