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Refugiados reais: diretor explica a bela abertura de "Órfãos da Terra"

Nilson Xavier

18/04/2019 07h00

Desde que surgiu pela primeira vez na tela, a abertura da novela "Órfãos da Terra" chama a atenção e arranca elogios. É uma das mais belas e sofisticadas dos últimos tempos. Ainda mais por ser uma ideia simples, embasada em pessoas, cenário, figurinos, arte e luz, dispensando trucagens de computação gráfica ou efeitos especiais. Claro que o computador entra, com filtros de luz, na edição, na sonorização. Porém, foge totalmente do padrão "pirotecnia eletrônica visual".

A abertura impressiona por ser uma ideia simples, que demanda muito mais criatividade e trabalho humano do que tecnologia. E uma abertura completa: uma fusão feliz de imagens e música, ancorados na proposta e trama da novela. A música é a bela "Diáspora", escrita e interpretada pelo grupo Tribalistas.

As pessoas que aparecem nas imagens são imigrantes ou refugiados reais, com histórias parecidas com as contadas na novela, oriundos de diversos países, como Congo, Angola, Venezuela e Síria. Entre eles Ruth Mariana, do Congo, Abdulbaset Jarour, Samy Mansour e Ramy Al Zoher, da Síria, Yves Makangwa e Maria Constancia Domingues, da Angola, e Nelson Jesus Sivira, da Venezuela. Há uma mescla de nacionalidades e de representatividade.

As pessoas são extremamente expressivas e a câmera parece traduzir a história de cada um em suas feições e olhares. Há ainda um ar altivo em suas expressões, o que confere um toque especial ao produto. A ONG "I Know My Rights" foi a parceira técnica para a seleção dos que participam da abertura. Além deles, surgem também alguns atores do elenco, ao final: Julia Dalavia, Renato Góes, Alice Wegmann, Osmar Prado, Eliane Giardini, Paulo Betti e Marco Ricca.

O  cenógrafo Keller Veiga usou elementos de diversas culturas representadas pelos refugiados: "Usamos muitos florais, cores terrosas, com uma aparência pesada, mas solene, tradicional e antiga. Elementos africanos também, latino-americanos, jamaicanos, pequenos detalhes para compor esse universo multinacional", disse Keller ao Gshow.

Entrevistei Alexandre Romano, diretor da abertura de "Órfãos da Terra"

1. Como nasceu a ideia da abertura?
De conversas e trocas com as autoras e direção da novela e a direção e equipe de criação da Comunicação da Globo. Para retratar o tema da trama, sentimos a necessidade de trazer algo que mostrasse os refugiados como pessoas comuns, com suas vidas comuns, que se viram numa situação de ter de abandonar seu país e, assim, discutir a importância de serem acolhidos com respeito. Achamos muito importante não só retratar o motivo da saída da terra natal, mas o acolhimento da cultura deles na nossa e vice versa. A trilha, escolhida pela direção no momento do briefing, nos dava um caminho narrativo crescente com uma mensagem agregadora e positiva. Na abertura começamos mostrando mais fisionomias e detalhes com expressão natural, daí vemos uma família síria e aos poucos vamos apresentando outras nacionalidades e elementos culturais. No decorrer do trabalho, exploramos os sorrisos e a interação entre eles até a grande mistura que encerra a abertura, com o elenco integrado às pessoas comuns. A ideia foi colocá-los junto aos refugiados e imigrantes de forma natural para os percebermos como parte do grupo da história que estão representando e com isso agregar valor histórico real para estarmos alinhados com o que a dramaturgia mostrará nos capítulos. A criação é minha (Alexandre Romano) e de Adriano Motta, diretor de arte, e com direção de criação de Mariana Sá.

2. A abertura foi gravada nos Estúdios Globo, no Rio de Janeiro, e em São Paulo?
Foram duas diárias separadas e equipes diferentes de produção dirigidas por nós. Optamos por seguir assim para respeitarmos tanto a logística de gravação do elenco, no Rio de Janeiro, quanto a rotina das famílias, já que a maior parte delas mora em São Paulo. Para a abertura, imaginamos uma cenografia realista do ponto de vista de vivência e elementos, mas gráfica e lúdica do ponto de vista de composição. Então achamos uma locação em São Paulo, uma casa antiga onde "vestimos" cada ambiente com elementos das diversas culturas, a maioria vinda das casas dos refugiados e imigrantes. Queríamos uma luz natural para ter um visual mais documental e a casa, com suas janelas, portais e texturas nas paredes e pisos nos permitiu isso. No Rio de Janeiro, a cenografia da Globo reproduziu o mesmo cenário nos Estúdios Globo, partindo da base dos nossos layouts e pesquisas do projeto para gravarmos a última cena, composta por elenco e refugiados e imigrantes reais parte da figuração na novela.

3. Quais fontes serviram de inspiração?
Fizemos uma pesquisa de fotógrafos documentais e de arte que trabalham com temas como ambiente familiar e cultura, fisionomia e origem, traços de identidade e intimidade e o espetacular do cotidiano urbano. Trabalhos como o de Thomas Struth, onde fotos de família num ambiente privado mostram a dinâmica social através da riqueza e complexidade de elementos em cena que transbordam significados e possibilitam perceber novos elementos a cada olhar. Da Holandesa Rineke Dijkstra, que explora os traços de identidade e a intimidade em fotos que captam a autoconsciência e um certo desconforto de pessoas reais fora de seus ambientes particulares. Da brasileira Barbara Wagner, que retrata o sentimento de orgulho e pertencimento de pessoas comuns em ambientes de lazer. Do Alemão Thomas Ruff e sua série de retratos de jovens com expressões neutras em close-ups, que chamam nossa atenção para a fisionomia. E do contemporâneo Martin Parr, que busca um certo exagero e exuberância em fotos cotidianas, onde mostra em cores super saturadas e um tom acima da realidade como nos apresentamos aos outros e o que valorizamos.

4. Como foi feita a escolha dos refugiados que aparecem na abertura?
Queríamos captar a essência real de quem deixa uma vida, seu país de origem para trás de forma abrupta e precisa se readaptar à outra sociedade que os acolheu. Buscamos junto à ONG "I Know My Rights", que acolhe e acompanha os refugiados recém chegados no Brasil e os ajuda a se integrar no país, algumas pessoas que poderiam fazer parte do trabalho. A entidade já estava trabalhando com as autoras e com a direção e produção da novela, então o apoio foi essencial para a escolha de pessoas com histórias de vida que conversam com nosso conceito. São todas pessoas comuns, cada uma com sua história de vida lá e aqui. Alguns fugiram da guerra na Síria, outros das violentas milícias do Congo, outros simplesmente imigrantes que resolveram tentar uma nova vida no nosso país. Tivemos todo um cuidado com eles na produção, pois não se tratavam de figurantes ou atores profissionais, todos dedicaram um tempo de suas vidas ali para representar sua origem. Minha orientação de direção foi pedir que agissem naturalmente, como se estivéssemos registrando uma foto de um momento especial, um momento de chegada e de encontro deles aqui no país que os acolheu, como uma foto oficial que os lembrassem não só do motivo que os trouxe ao Brasil, mas que apresentassem sua cultura e costumes para os brasileiros. Sentimos um orgulho forte em cada história deles e essa realidade é mais forte do que qualquer direção ou conceito.

Direção: Alexandre Romano / Direção de Criação: Sergio Valente, Mariana Sá / Criação e Direção de Arte: Alexandre Romano, Adriano Motta, Roberto Stein / Edição: Roberto Stein / Composição: Adriano Motta / Color Grading e Look Final: Alexandre Romano / Produção Executiva: Orlando Martins / Coordenação de Criação: Valerycka Rizzo / Logo Design e animação: Adriano Motta / Assistente de Criação: Gisele Ramalho / Atendimento: Carla Sá, Suzana Prista, Fabienne Verbicaro, Dryele Primo
Produtora: Detour Filmes / Produção Executiva: Michele Ruaro, Alvaro Beck / Direção de Fotografia: Lícia Arosteguy / Direção de Arte: Ana Henriques / Direção de Produção: Andrea Beni / Assistente de Direção: Flavia Zentil / Stylist: Guga Saraiva / Make Up: Aline Matias
Elenco e Consultoria Refugiados – Fundadora e Diretora Geral da ONG I Know My Rights – IKMR: Vivianne Reis
Produção Estudios Globo (última cena): Gerente de Produção: Lucas Zardo / Produção Comunicação: Amanda Lima / Cenógrafo: Keller Veiga / Cenógrafa Assistente: Milene Busch / Figurinista: Mariana Sued / Sup. Exec. Produção de Engenharia: Fábio Machado / Sup. Exec. de Produção de Execução: Lysia Backx / Sup. Produção: Renata Rossi / Ass. de Direção: Ricardo Franca, Cecília Bueno / Chefe Elétrica: Marcílio Maquinista / Chefe: Edison Mugica / Caracterizadora Titular: Gilvete Santos

Fotos: reprodução.

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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