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Alice Marcone, sertaneja e trans, sobre Marília: 'Que feminejo é esse?

Alice Marcone decidiu apostar na música de raízes caipiras e lançar o "travanejo" - Reprodução
Alice Marcone decidiu apostar na música de raízes caipiras e lançar o "travanejo" Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

11/08/2020 07h00

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Resumo da notícia

  • Cantora não acredita em cancelamento e aposta em ampliação do debate sobre transexualidade
  • Alice já lançou música e trabalha em novas músicas sertanejas
  • Artista ainda escreveu série para o Canal Brasil e atualmente é jurada de reality show do E!

As acusações de transfobia que recaíram sobre Marília Mendonça após suas declarações durante uma live causaram discussões e serviram também para jogar luz sobre artistas LGBTs que se arriscam no sertanejo. Transexual, Alice Marcone, 25 anos, acaba de lançar seu primeiro trabalho, chamado "Noite Quente", e espera que o episódio abra novas frentes de diálogo. "O cancelamento não vai fazer ela ser menos milionária. O momento é de redistribuir as atenções e discutir o assunto", afirma.

Polivalente, Alice tem trabalhado como atriz, modelo e roteirista. Ela integra a equipe de "Noturnos", série do Canal Brasil que transforma letras de Vinícius de Moraes em histórias de terror, e é uma das juradas de "Born To Fashion", reality show do canal E! que busca uma top model trans sob o comando de Laís Ribeiro. Com a carreira na música, pretende fundar um movimento: o travanejo. Alice conversou com a coluna.

Como a música sertaneja surgiu em sua vida?
A minha história é a de uma travesti que cresceu na zona rural do interior de São Paulo. Eu não tive outra opção que não estar cercada por música sertaneja, vivendo nesse universo. Nasci em Valinhos, cresci em Serra Negra, e morei em sítio boa parte da minha vida. Eu acho que crescer nesse universo dificultou inclusive o entendimento da minha identidade como mulher trans. Fui entender isso na cidade grande. Era uma "criança viada" e sofri muito preconceito e violência no interior. Isso tem a ver com a heteronormatividade e o jeito que ela opera à nossa volta.

Por que o sertanejo e não a música pop, por exemplo?
Eu sempre fui muito artista, me expresso de várias maneiras. Fui "little monster", brinco que a Lady Gaga salvou minha vida no interior, e até tentei dialogar mais com o pop. Depois de lançar o primeiro EP, que tinha tantas referências e ritmos, eu não me via naquilo que tinha feito. Era tão abrangente que fiquei por um bom tempo me perguntando qual era a minha identidade artística. Demorei de dois a três anos para começar a ter pistas de que a minha identidade precisaria passar por um resgate das minhas raízes e da minha história. Queria falar sobre o que é ser uma mulher trans no interior e porque a gente não vê isso na mídia. Perceber a necessidade de pontuar isso me trouxe essa necessidade de representatividade, para que quem está no interior possa crescer com novas possibilidades de identificação e também para as pessoas do sertanejo, que normalmente não têm contato com a existência de pessoas trans. O sertanejo está na nossa cultura, é nosso mainstream. A ideia é promover uma aliança entre a cisgeneridade e a transgeneridade.

Por que já segmentar o ritmo batizando-o de travanejo?
Como é um movimento que está muito no começo, e a gente está em um momento em que as coisas são mais difíceis, eu acho muito difícil que meu público seja o do sertanejo tradicional. Quero engajar o público LGBT mesmo. Quero marcar que tem uma travesti fazendo sertanejo. Eu enquanto caipira na capital, percebo também que tem um preconceito em relação ao universo sertanejo, um preconceito da cidade grande contra o interior.

É impossível não falarmos sobre o episódio envolvendo Marília Mendonça.
Está rolando uma mobilização muito grande nas minhas redes sociais. Que "feminejo" é esse que não inclui as mulheres trans? Eu também sofro, também falo de amor. As mensagens que construo em minhas músicas são muito parecidas com as dela. Ela é uma referência. Podemos aproveitar esse momento para construir uma aliança e reeducar a ela e ao seu público.

"Não acredito em cancelamento, até porque a gente não vai fazer isso. Ela vai continuar milionária e riquíssima. Acho que a hora é de aproveitar esse momento para conversar e ampliar o debate."

Qual sua reação ao assistir ao vídeo em que Marília Mendonça foi acusada de transfobia?
Eu chorei horrores, fiquei muito mal. Foi muito horrível. Ela de fato é um ícone para mim e continua sendo. Ela é um ícone do empoderamento feminino, ainda mais dentro de um universo tão machista quanto o sertanejo. Mas as questões do sertanejo não se resumem só ao machismo, eu me sinto apagada. Meus ancestrais negros que faziam música caipira estão sendo apagados. Ao mesmo tempo, a gente tem de pensar na estrutura que a cerca. A Marília Mendonça está ali cercada de homens, a piada não começa com ela. Ela certamente ouviu de um homem. A grande pauta que a gente tem de colocar é ressaltar a estrutura do sertanejo, que ainda é formada em sua maioria por homens heterossexuais, cisgêneros e brancos.

E como foi a experiência no "Born To Fashion"?
Foi maravilhoso! Eu, que estou acostumada a trabalhar mais com ficção em meu trabalho como roteirista, tive de lidar com personagens que são pessoas reais. O programa tem um potencial incrível de educação e transformação. Quero falar de aliança e que mulheres trans são mulheres. Essas modelos vão disputar e ressignificar a feminilidade na moda, expandir nossos conceitos.

Algum problema com o fato de Laís Ribeiro, a apresentadora, não ser trans?
A presença da Laís é uma validação e é muito importante para entender que estamos falando do feminino e de tudo que ele engloba. Construímos uma aliança entre mulheres, sem distinções.