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Exército veta filmagem de documentário onde Miriam Leitão foi torturada

A jornalista Miriam Leitão - Miriam Leitão (Reprodução/TV Globo)
A jornalista Miriam Leitão Imagem: Miriam Leitão (Reprodução/TV Globo)

Do UOL

Em Brasília

18/03/2020 18h38

Resumo da notícia

  • Matheus Leitão, filho da jornalista, produz documentário para o canal HBO
  • Produção solicitou acesso ao forte no Espírito Santo onde jornalista ficou presa
  • Apesar de o local ter visitação pública, Exército negou a entrada das equipes

O Comando do Exército se recusou, por quatro vezes, a permitir que o jornalista Matheus Leitão e a equipe de gravação da série documental "Em Nome dos Pais", em exibição no canal HBO, filmassem as celas e salas em que seus pais, os jornalistas Miriam Leitão e Marcelo Netto, ficaram presos e foram torturados de 1972 a 1973, durante a ditadura militar (1964-1985).

A proibição se estendeu à própria entrada, nas instalações, de Miriam e de Marcelo.

A recusa ocorreu ainda no governo de Dilma Rousseff (2011-2016), poucos meses antes do seu impeachment. Acionada em grau de recurso pela LAI (Lei de Acesso à Informação), a CGU (Controladoria Geral da União) também negou o pedido, em maio de 2016.

Nesta quarta-feira (18), a HBO levará ao ar o terceiro episódio da série, que contará a proibição do Exército.

O 38º Batalhão de Infantaria de Vila Velha (ES) inclui um forte construído por volta de 1700, o São Francisco Xavier. No forte e em instalações construídas ao seu redor ao longo do tempo, diversos presos políticos foram presos e torturados nos anos 70.

Miriam foi torturada com agressões físicas, pancadas na cabeça, tortura psicológica, ameaçada por soldados com cães pastores e trancada numa cela escura com uma cobra, apelidada de Miriam, que foi trazida por um homem depois identificado como o coronel Paulo Malhães (1937-2014), então agente do CIE (Centro de Informações do Exército).

Marcelo também foi torturado e confinado numa solitária por vários meses.

Miriam tinha 19 anos de idade na época e estava grávida de seu primeiro filho.

Ela nunca participou de ações da luta armada na ditadura. Na época da prisão era militante ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e a posterior acusação, feita na Justiça Militar, nada tinha a ver com atos de terrorismo — ao final, Miriam foi absolvida.

O processo envolveu 28 pessoas, a maioria estudantes universitários, a quem o Exército atribuiu uma suposta tentativa de organizar o PCdoB no Espírito Santo, com panfletagem, aliciamento de estudantes e pichações. Miriam depois foi absolvida e seu então marido, Marcelo, condenado a apenas um ano de reclusão.

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Torturador confirmou que usava jiboia

O coronel Malhães (1937-2014), que usava o pseudônimo de "doutor Pablo", muitos anos depois deu depoimentos ao jornal "O Globo" e à CNV (Comissão Nacional da Verdade) confirmando que matou e torturou presos políticos antes de "evoluir" como pessoa.

Ele reconheceu que de fato usara uma cobra jiboia em suas torturas. Em 2015, o atual presidente Jair Bolsonaro tripudiou sobre as torturas sofridas por Miriam, dizendo "coitada da cobra".

O forte de Vila Velha é alugado para eventos civis, como formaturas e festas. Numa dessas ocasiões, possivelmente confundido com um convidado, Matheus conseguiu entrar no forte, quando fazia pesquisas para seu livro homônimo, lançado pela editora Intrínseca em 2017.

Quando solicitou formalmente acesso para o documentário, o Comando do Exército não autorizou e ainda recomendou, em tom de ameaça, que não utilizasse nenhuma filmagem do local.

Ele pretendia que seus pais olhassem o ambiente, as "salas, objetos, quadros, fachadas, desenho arquitetônico, símbolos e eventuais documentos dispostos em paredes, espaço cultural e gabinetes".

Esses elementos de informações ajudariam Miriam e Marcelo "a reconstruir a memória de quando estiveram presos". Matheus argumentou ainda ao Exército que o pedido atende o "direito fundamental de acesso à informação" e a gravação do documentário possibilitará a "divulgação de informações de interesse público".

Para o documentário e para seu livro, Matheus procurou diversas vezes o Exército a fim de obter esclarecimentos ou manifestações sobre as torturas e maus tratos ocorridos dentro do batalhão de Vila Velha, mas não houve manifestação.

Matheus localizou um militar da época, Eduard Alois. Ele disse que só "posteriormente ficou sabendo" das denúncias de tortura, mas não na época em que ocorreram.

"Os oficiais não falavam [na época]. Os métodos de interrogatório a gente sabe que eram bem contra os direitos humanos", disse o militar ao documentário.

Quando revelou detalhes das torturas em público pela primeira vez, em 2012, Miriam disse que nunca recebeu um pedido de desculpas das Forças Armadas nem o reconhecimento de que ocorreram as torturas e abusos.