Por que caso de Cicarelli contra Google pode ser último do tipo no Brasil
O processo da apresentadora de TV Daniela Cicarelli contra o Google chegou ao fim nesta semana, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que a empresa pague uma indenização a Cicarelli pela publicação de um vídeo íntimo dela no YouTube, em 2006.
A diferença entre o valor pedido pela apresentadora e por seu ex-namorado Renato Malzoni na época e o pagamento estipulado pela Justiça, no entanto, é grande. Cicarelli e Malzoni queriam cerca de R$ 94 milhões e devem receber R$ 500 mil.
O vídeo, feito por um paparazzo, mostrava o casal em momentos íntimos em uma praia na Espanha. Ele chegou a ser retirado do ar após uma decisão judicial, mas foi replicado por outras pessoas e postado novamente com outros nomes.
Segundo o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e especialista em direito digital Carlos Affonso Pereira de Souza, casos com a dimensão do protagonizado por Cicarelli e Malzoni são "herança de um tempo pré-Marco Civil da Internet" e devem ser cada vez mais raros.
"Não sei se este é o último, mas gostaria que fosse, porque o Marco Civil vem justamente para evitar que casos como esse se repitam com frequência e dar segurança aos provedores de serviços e às vítimas", diz à BBC Brasil.
Souza explica que, antes do Marco Civil, existia uma dúvida sobre se a empresa provedora de um serviço na internet deveria ser penalizada caso fosse notificada de algum conteúdo ofensivo ou ilegal publicado em suas plataformas e não o tirasse do ar.
Naquela época, as decisões judiciais, de maneira geral, diziam que sim.
Por isso, o Google teve que pagar indenizações ao autor de novelas Aguinaldo Silva, por não ter retirado do YouTube todos os vídeos em que um comediante o imitava, ao cantor Latino, por um vídeo em que ele era xingado, à atriz Giovanna Lancelotti, por ter mantido no Orkut uma página com conteúdo falso sobre ela, a um procurador do Rio de Janeiro, por ter mantido no YouTube vídeos que ele alega terem ferido sua honra, entre outros.
"Começaram a aparecer casos que são muito subjetivos. Então o Marco Civil tentou acabar com a preocupação de que os provedores se tornassem um instrumento de censura privada, porque caberia a eles, em última instância, definir o que é conteúdo ilícito a partir de uma notificação", afirma Souza.
Quando a empresa pode ser penalizada?
A legislação, aprovada em abril de 2014, diz que o provedor não seria responsável por algo que foi postado, a não ser que haja uma ordem judicial que diga que aquele conteúdo é realmente ilícito. E este conteúdo deve ser indicado especificamente.
Para garantir esta especificação, diz Souza, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou, há cerca de quatro meses, a exigência das URLs (os links que levam a cada foto, vídeo ou página na internet) para identificar um conteúdo ilícito.
Se o vídeo de Cicarelli fosse publicado hoje, por exemplo, a ação judicial movida por ela teria que listar os links de todas as reproduções do vídeo, para que elas pudessem ser removidas e, caso contrário, o Google fosse responsabilizado.
"Isso é importante porque se você não indica a URL, caímos na armadilha de dar ao provedor o dever constante de monitorar uma eventual repostagem daquele conteúdo e de criar um mecanismo de filtragem para tirar a imagem do ar sempre que ela aparecer. Mas isso pode envolver exercícios de liberdade de expressão, de crítica, de sátira."
O especialista do ITS alerta, no entanto, que qualquer pessoa pode tentar remover conteúdo ilegal ou ofensivo na internet notificando empresas como Google e Facebook.
"Eu notifico os provedores (de serviços) e, se eles entenderem que o conteúdo viola seus termos de uso, podem decidir removê-lo. A diferença é que eles não são obrigados a fazer isso", afirma.
"Caso não façam, é preciso ingressar com uma ação judicial e, até mesmo com uma liminar, obrigar a empresa a tirar o conteúdo do ar. Por isso casos com os de Cicarelli são mais difíceis de acontecer no futuro. Para serem penalizadas, as empresas agora terão que descumprir uma ordem judicial de remoção que mostre até o link indicando o conteúdo."
O Google afirmou, em comunicado, que a "drástica redução no valor da multa" foi "muito importante".
"Por se tratar de um caso antigo e anterior à consolidação da atual jurisprudência do STJ que exige a indicação de URLs específicos para a remoção de conteúdo da internet, o Tribunal entendeu não ser possível o afastamento integral da condenação. Mesmo assim, fez a ressalva da peculiaridade processual e reafirmou seu compromisso com a tese, essencial para a preservação da liberdade de expressão na internet", disse a empresa em nota.
YouTube fora do ar
Em janeiro de 2007, um juiz chegou a determinar o bloqueio temporário do YouTube por conta do processo movido por Malzoni e Cicarelli. A apresentadora foi alvo de protestos que chegaram a pedir sua demissão do canal onde trabalhava, a MTV Brasil, e pediu desculpas a internautas.
O bloqueio de um site com a envergadura do YouTube foi um acontecimento único, segundo Souza, e também deve se tornar mais difícil.
"Cada vez é mais claro para o poder judiciário que você não deve punir a plataforma como um todo pela conduta de uma pessoa. É melhor que se atue para remover a foto, o vídeo, o comentário e punir os responsáveis pelo conteúdo", afirma ele.
"Essa discussão é global. Em países até menos óbvios como no Paquistão, já existe uma decisão semelhante ao Marco Civil. Agora em termos gerais, talvez os principais exemplos inspirados no Marco Civil sejam a Itália, que acabou de aprovar uma Declaração de Direitos na Internet no Parlamento italiano e que estão tentando que seja aprovada no Europeu. Eles citam expressamente o marco brasileiro como inspiração."
O YouTube já foi suspenso temporariamente em países como Armênia e Líbia, por conta de vídeos de manifestações contra os governos destes países. Em outros, como Afeganistão, Bangladesh, Irã, Paquistão, Sudão e Sudão do Sul, bloqueios foram motivados pela publicação de um vídeo considerado ofensivo a muçulmanos.
O site é inacessível atualmente em países como China e Coreia do Norte.
Nos EUA
Já nos Estados Unidos, Google, YouTube e outros provedores de serviços não costumam ser processados quando se trata de questões como invasão de privacidade, injúria ou difamação, segundo Jeremy Malcolm, advogado e analista de política global da ONG americana Electronic Frontier Foundation, ativista de direitos digitais.
Nos Estados Unidos, o sistema de "notificação e retirada" de conteúdo considerado ilegal só é adotado na legislação específica de direitos autorais. Por isso, é comum ver notícias sobre astros da música americana ameaçando processar a empresa, caso ela não retire do ar vídeos que eles consideram ilícitos.
Mas o artigo 230 em uma lei chamada Communications Decency Act (CDA) diz que os provedores de serviços, como o Google, não são responsáveis por fotos, vídeos e comentários postados nas redes sociais.
"Isso foi importante para o desenvolvimento dessas plataformas de internet nos Estados Unidos, porque elas conseguiram se preocupar com seus próprios negócios de maneira diferente do que acontece em outras partes do mundo, onde são ameaçadas por processos", diz Malcolm à BBC Brasil.
"Por outro lado, isso também significa que é mais difícil fazer algo se algo ofensivo a você for publicado na internet. Você tem que ir atrás da pessoa que colocou o conteúdo online. E se isso foi reproduzido centenas de vezes, fica muito mais difícil."
Ele diz, no entanto, que o Marco Civil brasileiro é "um passo na direção certa" ao considerar que só se pode responsabilizar as empresas por trás de sites como o YouTube quando houver ordem judicial clara e específica sobre o conteúdo.
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