"Arte me deu autoestima", diz atriz angolana que faz escrava em "Liberdade"
Não foi só o telespectador que ficou incomodado com a cena de Luanda (Heloisa Jorge) sendo torturada por Dionísia (Maitê Proença) em "Liberdade, Liberdade". O mesmo sentimento tomou conta do elenco, da direção, da figuração e da equipe técnica nos bastidores. No centro da ação, quem carregava a maior carga emocional era a atriz de 31 anos, em seu primeiro dia de gravação.
"São cenas bem delicadas de fazer, mexem num outro lugar, é muito pessoal. Apesar de a gente não ter vivido isso, vive por conta da sociedade em que a gente está inserida. Não precisei de trabalho nenhum, foi colocar a máscara e veio o sentimento de humilhação, de se sentir subjugada. Eu olhava para a equipe toda e notava um constrangimento, tinha um desconforto muito grande nesse dia. Foi bem difícil. Nessas horas, você não pensa em técnica, em segurar a emoção porque você vai ter que repetir várias vezes. E essa cena a gente repetiu bastante", diz.
Preconceito é palavra que Heloisa conhece bem. Não só por ser negra mas também por ser africana - nascida na província de Lunda-Norte, na Angola, filha de angolana e brasileiro, ela mora no Brasil desde os 12 anos.
"Vim na condição de refugiada, com meu irmão por parte de pai, e recebi uma ajuda da Cáritas e da ONU, e a minha mãe ficou com os meus outros irmãos. Passamos por situações que ficaram na gente, no nosso corpo, fazem parte da nossa formação como ser humano. Então, quando recebi essa personagem com o nome de Luanda (capital da Angola), encarei como um presente e como um desafio", afirma ela, a mais velha de cinco irmãos.
A guerra, as dificuldades econômicas e a vida sem endereço fixo ficaram para trás, mas a vida em Montes Claros, no interior de Minas Gerais, apresentava outros obstáculos. A total falta de conhecimento sobre o continente africano era uma delas, e a então adolescente, uma das poucas negras da escola, não queria mais responder se andava de elefante ou vivia numa tribo. Perdeu o sotaque o mais rápido que pôde e criava personagens na hora de apresentar os trabalhos. Conseguiu virar o jogo e se tornar popular. "Não era mais chamada de africana ou angolana, eu era a Heloisa, a que imitava bem, a engraçadinha. E não mais aquele corpo estranho no meio dos meus colegas", lembra.
Vida nova em Salvador
Mas orgulho mesmo de suas origens ela só sentiu quando se mudou para Salvador, para cursar Artes Cênicas, aos 18 anos. Aprovada em duas universidades mineiras, ela queria, no entanto, fugir um pouco dali, e as semelhanças da capital baiana com a cidade de Luanda a fizeram escolher seu novo endereço. Foi lá que ela se livrou de vez dos estereótipos pejorativos e passou a enxergar a própria beleza.
"Não foi à toa que escolhi o teatro, porque eu podia ser quem eu quisesse. A arte me ajudou muito, me deu autoconfiança, autoestima. E Salvador ajudou a definir quem eu sou. Lá, assumi o meu cabelo crespo, quando eu vi aquelas negras maravilhosas. Sempre usei cabelo alisado, cheio de creme, coquinho, em Montes Claros. Eu não via ninguém com o cabelo crespo e volumoso como o meu. Eu não era padrão de beleza na escola. Cheguei pequenininha, em Salvador descobri todo meu poder. As pessoas achavam bonito dizer 'Tenho uma colega africana', falavam com orgulho", diz ela, que atualmente mora no Rio.
Hoje, a atriz sente que pode fazer o mesmo por outras meninas negras. Um ano depois de estrear na TV em "Gabriela", em 2012, foi convidada para protagonizar a novela "Jikulumessu" em sua terra natal, onde pôde manter os penteados afro.
"Lá existe uma coisa escrava da negra norte-americana: peruca, apliques, cabelo alisado. Fiquei com medo de ter que passar por uma mudança radical. Comecei a perceber nas ruas mulheres com cabelo curtinho, carecas, num momento de transição. Vários grupos e blogs entram em contato comigo. Isso acontecer em Angola é muito forte, e se eu pude contribuir... Eu quero é mais", brinca ela, que diz ter feito as pazes com a dupla nacionalidade ao apresentar o programa "Conexões", sobre a cultura dos dois países.
Sua personagem, Djamila, uma angolana que viveu no Brasil e persegue o sonho de ser cantora, também lhe proporcionou um retorno ao país depois de alguns anos longe. "Consegui reencontrar minha família, minhas raízes. Estar lá já adulta, com a minha profissão, me fez olhar para o meu país de uma forma muito particular. Foi uma das experiências mais fortes da minha vida", diz ela, acrescentando que as novelas brasileiras são "consumidas com farinha" em Angola, populares a ponto de inspirar um comércio local chamado Roque Santeiro.
Em alguns momentos, no entanto, Heloisa se sentia um tanto estrangeira. "Era muito doido porque eu estava no meu lugar e me sentia tão fora dali... Deixei outro país. Quando saí, o aeroporto era de terra batida, Luanda cresceu muito. Eu não via tantos estrangeiros. Na minha infância, eu ficava emocionada toda vez que via um brasileiro. Queria perguntar se conhecia meu pai (risos). A gente ficou muitos anos sem contato com ele. As pessoas me dizem: 'Você tem que escrever essa história', mas eu sempre tive medo do lugar da vítima. E às vezes o que é relevante para mim não é para o outro", conta.
Nova fase de Luanda
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