Hábito de assistir a maratona de séries está mais popular e desafia autores
Quase todo fã de séries já caiu nessa tentação: fazer uma maratona e ver vários episódios seguidos, sem conseguir parar. O hábito, apesar de estar ligado a problemas como depressão, ansiedade e estresse, segundo estudos, está se tornando cada vez mais popular: a pesquisa TV & Media, conduzida pela Ericsson em 2015, revelou que 87% dos usuários de serviços como Netflix e Amazon Video assistem a vários episódios em sequência pelo menos uma vez por semana.
Mas da onde vem essa compulsão, que às vezes se manifesta mesmo que a série em si nem seja tão boa? Autores consultados pelo UOL revelam alguns recursos usados em roteiros, como "recompensas", ganchos e perguntas não respondidas no mesmo episódio.
Para o roteirista e diretor por trás de “Magnífica 70”, da HBO, Cláudio Torres, ela está ligada aos novos formatos de temporadas, com menos episódios, que surgiu com produções como “Família Soprano”, da HBO. “Ao baixar o número de episódios era possível pensar em um arco de trama inteiro, como um filme de 11 horas, que tem em cada capítulo um 'pay back' [uma recompensa], mas que na realidade constrói uma teia que carrega o espectador por um túnel até o fim da temporada (o arco longo). Nestas últimas duas décadas foram feitas séries fabulosas nesse formato, algumas delas com 4, 5 e até 6 temporadas, que passaram a ser oferecidas pelos serviços on demand e afins. Enquanto o vício das séries se estabelecia, os espectadores que não acompanharam as exibições semanais das séries, subitamente passaram a devorá-las em pacotes armazenados”.
Enquanto o vício das séries se estabelecia, os espectadores que não acompanharam as exibições semanais das séries, subitamente passaram a devorá-las em pacotes armazenados.
O roteirista Cláudio Torres
Já José Alvarenga Jr, que está prestes a estrear a série “Supermax”, da Globo, acredita que os produtores redescobriram o “gancho”, aquela cena que deixa o espectador ansioso pelo próximo episódio – o maior exemplo recente disso foi a morte de Jon Snow em “Game of Thrones”, que fez o mundo inteiro falar sobre o destino do personagem. “Em uma época em que há uma necessidade de assunto muito grande, todo mundo está ligado em redes sociais, todo mundo tem uma opinião sobre qualquer coisa, o gancho é muito interessante, porque ele faz você especular”, analisa.
Os mistérios lançados por séries como “Lost” também fazem o público manter o interesse nas tramas. “Você começa a ter uma série de perguntas que não são respondidas naquele capítulo, nem no capítulo seguinte, talvez sejam respondidas 20 capítulos depois, talvez na temporada seguinte. Isso criou, num momento em que todo mundo precisa ter assunto, uma série de provocações, você se torna quase um detetive privado daquela história, pra descobrir o que foi foi dito, o que está cifrado.”
Desafios de roteiristas e diretores
Mas isso afeta os trabalhos dos roteiristas e diretores por trás dessas produções? Segundo os autores consultados pelo UOL, essa nova forma de assistir traz mais alguns desafios para quem trabalha com TV.
É manter o público preso para a sua grande história e manter o público encantado dentro do seu próprio episódio.
O cineasta Breno Silveira sobre conciliar a história da temporada com a de cada episódio.
Para o cineasta Breno Silveira, que estreou no mundo das séries recentemente com “1 Contra Todos”, da Fox, o novo formato também traz a necessidade de conciliar a história geral da temporada com a história de cada episódio. “É manter o público preso para a sua grande história e manter o público encantado dentro do seu próprio episódio. Você tem dois arcos dramáticos que têm de estar muito bem emendados. Você pode ter um capítulo ruim e fazer que esse arco maior se quebre”, opinou ele – que parou de ver “House of Cards” e “Breaking Bad” justamente depois de assistir episódios que não caíram no seu gosto.
Já Torres acredita que o maior desafio é construir uma história que se desdobre em várias temporadas, e não fique restrita a “casos do dia”, como foi o caso de programas como “CSI” e “Law and Order”. “As séries episódicas não propiciam tanto o “binge watching”, pois ao assistir vários episódios seguidos, o truque se evidencia. Adoro ‘House’, mas todo mundo sabia que ele ia errar o primeiro diagnóstico, submeter o paciente a tratamentos insanos (que quase os matavam) e era salvo por uma epifania do Dr House, no último bloco do programa. No canto oposto - o mundo inteiro aguarda a reunião dos órfãos Starks no final de 'Game of Thrones'”, avalia.
A linguagem, para quem cresceu com a onipresença das novelas, como boa parte dos brasileiros, também representa um desafio, na opinião de Alvarenga. “O que tem a novela brasileira? A reiteração. Você escreve que o personagem tem um problema qualquer, essa situação vai ser reiterada durante muito tempo, porque é uma maneira de você manter [atualizado] o público que não assistiu ao capítulo. No Brasil, a maior dificuldade é você fugir dessa reiteração. É você assumir que essa pessoa vai assistir aquilo, aquela informação vai ser dada em determinado momento, e você talvez só volte nela daqui a vinte episódios. Isso provoca no público um nível de atenção muito grande, os seriados têm essa característica.”
Nem "Game of Thrones", a série mais comentada do momento, está imune aos novos hábitos do público. Em entrevista à "Variety", Dan Weiss, um dos criadores da atração, afirmou que erros de continuidade entre episódios "se destacam mais" quando se passa diretamente de um episódio para o outro.
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