Repórter que revelou abusos de Abdelmassih abandonou carreira após caso
Os casos de abusos sexuais cometidos pelo médico Roger Abdelmassih voltaram a ser assunto desde a estreia de “Assédio”, série da Globo disponível no serviço “Globoplay” há um mês cujo primeiro episódio foi exibido na TV nesta segunda (15). Responsável por revelar as denúncias contra o especialista em reprodução humana em reportagem publicada em 2009 na Folha de S.Paulo, a jornalista Lilian Christofoletti teve que lidar com a desconfiança de pessoas influentes por expor as histórias envolvendo o renomado profissional na época.
Abdelmassih, que foi condenado a mais de 200 anos de prisão, é um dos pioneiros em fertilização in vitro no Brasil e era um dos médicos mais procurados em sua área por casais que queriam realizar o sonho da paternidade. “Assédio”, baseada no livro "A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih", de Vicente Vilardaga, e de autoria de Maria Camargo, mistura realidade e ficção.
A personagem Mira, interpretada pela atriz Elisa Volpatto, funde as histórias de três jornalistas: Lilian, da Folha; Ivandra Previdi, na época da TV Globo; e Leandro Sant’Anna, produtor do “Domingo Espetacular”, da Record, que descobriu o paradeiro de Abdelmassih. Na série, Mira é alertada por uma ex-paciente de Roger Sadala (Antonio Calloni) sobre os crimes do médico. Na vida real, Lilian recebeu a informação de um advogado de uma das vítimas.
“Fomos almoçar e ele me contou. Fiquei chocada porque tinha uma pessoa próxima a mim fazendo o tratamento com ele para engravidar. Eu tinha a referência de que o Roger era o melhor e foi quando a minha fonte disse: ‘Algumas mulheres estão tentando denunciar, mas ninguém acredita'. Conversei com a chefia do jornal, que mandou eu ir atrás da história”, lembra ela, hoje empresária, em entrevista ao UOL.
Na época, a jornalista descobriu que Abdelmassih era investigado na Delegacia de Defesa da Mulher e no Ministério Público do Estado de São Paulo após colher o depoimento de oito ex-pacientes e de uma ex-funcionária. Lilian foi atrás das pacientes e teve que convencê-las a falar publicamente sobre o caso.
“Elas tinham muito medo de conversar, de se expor, de confiar em alguém. A primeira que conversei estava muito triste, descrente nas instituições. Ninguém acreditava nela porque envolvia um médico poderoso. Além da desestrutura da violência sexual, elas sofriam por não conseguirem provas. E fui localizando mais e mais mulheres”.
A jornalista conta que muitas das vítimas se sentiam culpadas por terem sido abusadas. "Elas pensavam: 'Será que dei chance para ele fazer isso?’ Eu sabia que elas falavam a verdade, mas precisava de mais. Até que uma delas aceitou fazer a foto, sem mostrar o rosto. Aí tínhamos alguém de fato”, relembra.
Encontro com Roger
Com os depoimentos das vítimas, Lilian Christofoletti foi ouvir a versão do médico. O primeiro encontro com Roger Abdelmassih aconteceu na clínica dele, que ficava na região dos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Assim como é retratado em “Assédio”, a repórter conta que o médico tentou intimidá-la com frases como: “Eu sou amigo de muitos jornalistas".
“A condição para eu falar com ele era de ir sozinha e sem fotógrafo. Fiquei muito apreensiva, as pessoas que o defendiam falavam que era loucura, que eu estava entrando em uma fria. Fui recebida pelo advogado e pela assessora dele, e depois pelo Roger exatamente na sala onde ele atacou as mulheres. Tinha uma parede de vidro que me chamou muita atenção. Quando ele começou a falar, eu já percebi que queria ganhar minha confiança”, contou Lilian.
O médico se defendeu das acusações e afirmou que não sabia quem eram as mulheres que o denunciaram. Na série, Roger Sadala trai a mulher, Glória (Mariana Lima), com várias amantes, mas afirma a todo momento que a ama. Lilian disse que o Roger real disse as mesmas palavras.
“Ele falou que era apaixonado [pela esposa] e que estava sendo prejudicado. Me perguntou se eu já tinha sido sedada alguma vez e se me lembrava de algo. Mas em muitos dos ataques as mulheres nem tinham sido sedadas e lembram perfeitamente do que aconteceu”.
Lilian lembra que o médico chegou a pedir para ela colocar a mão em seu braço: “Ele me falou: ‘Veja se eu sou um homem capaz de agarrar uma mulher?’ e arregaçou as mangas e mandou eu apertar seu muque. As pessoas que estavam na sala acharam engraçado. Foi constrangedor”.
Acusada de machismo
A jornalista sabia que divulgar o caso poderia destruir a carreira de Roger Abdelmassih. Pesava contra o fato de que algumas vítimas demoraram anos para tomar coragem de denunciar o médico, além de outras mulheres que continuaram com o tratamento na clínica após os abusos.
O caso tomou uma proporção gigantesca. A polícia ainda não tinha instaurado inquérito e a reportagem foi publicada com o título: “Médico é investigado por supostos crimes sexuais”. Lilian conta que não só teve sua credibilidade questionada por quem defendia o médico, como foi chamada de machista pelos que o criticavam por tratá-lo como suspeito.
“Fiquei muito chateada. Foi uma orientação do jornal [em tratá-lo como suspeito], não tinha denúncia na Justiça, não tinha condenação", lembra ela. O caso ainda foi comparado com o da Escola Base, em que donos de uma escola particular em São Paulo tiveram suas reputações arruinadas após serem acusados injustamente por vários veículos de imprensa de abusar sexualmente de crianças, em 1994.
"Um colunista de um outro jornal escreveu: ‘Será uma nova Escola Base?’ E comparou os depoimentos das mulheres com os das crianças de 4 anos. Isso me chocou muito porque fizemos o certo."
Depois da reportagem, mais vítimas procuraram a polícia e outras ligaram para Lilian apenas para agradecer. “Eram atrizes, jornalistas, mulheres instruídas que também sofreram abusos do Roger, mas não quiseram denunciar por medo da exposição. Mas teve outras que o defenderam, falando que as vítimas confundiram porque ele era carinhoso com as pacientes, que era normal ele dar selinho na boca das mulheres. Sinceramente, nunca vi médico dar beijo na boca de paciente”.
Quatro meses depois de ser publicada a reportagem, Lilian Christofoletti tinha uma viagem marcada para estudar nos Estados Unidos e, ao retornar, pediu demissão da Folha após engravidar. Ela afirma ter deixado o jornalismo para se dedicar ao filho. “Queria ter outro ritmo de vida com ele. Amo a minha profissão, mas preferi assim. Na época ainda falaram que o Roger havia pedido minha cabeça", conta.
Atualmente, Lilian administra uma fábrica de colchão com cerca de 400 funcionários. “Tenho muito orgulho dessa história. É a reportagem com que fechei minha carreira no jornalismo”.
Roger Abdelmassih foi condenado em 2010 a 278 anos de prisão por 52 estupros (e quatro tentativas) contra 39 mulheres e ficou foragido por três anos. Foi encontrado em 2014 em Assunção, no Paraguai, e atualmente, aos 75 anos, cumpre prisão domiciliar por apresentar problemas de saúde.
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