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Pouca grana, fome e frio: a dura vida dos figurantes da TV brasileira

Figurantes atuam ao lado de Caio Blat em batalha de "Deus Salve o Rei" - Cesar Alves/Globo
Figurantes atuam ao lado de Caio Blat em batalha de "Deus Salve o Rei" Imagem: Cesar Alves/Globo

Carolina Farias

Do UOL, no Rio

15/03/2019 04h00

Eles estão em todas as produções da teledramaturgia brasileira, mas seus rostos não são conhecidos. Os figurantes são aqueles que estão em segundo plano, atravessando a rua, na fila do banco ou sobre um cavalo empunhando uma espada em uma batalha. Sem eles não há realismo nas cenas.

A rotina, no entanto, nem sempre é tão simples quanto o papel que desempenham: esperar o dia todo para gravar uma cena que durará segundos, à mercê de intempéries, com figurino nem sempre adequado é o de praxe. A morte de Joseph Lima dos Santos, em uma gravação de "O Sétimo Guardião", colocou em primeiro plano a categoria.

De acordo com a lei 6.533, que dispõe sobre a profissão de artista, figurante é "a pessoa convocada pela produção para se colocar a serviço da empresa, em local e horário determinados, para participar, individual ou coletivamente, como complementação de cena". A mesma lei diz que é necessário registro profissional para trabalhar, porém para os figurantes não há essa exigência.

As emissoras, no caso do Rio, Globo e Record, não contratam figurantes, e sim agências.

Segundo Délcio Marinho, presidente do SatedRJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio de Janeiro), acordos coletivos feitos anualmente com as empresas estabelecem direitos de artistas, incluindo os figurantes.

"O acordo estabelece todos os direitos, diária [cachê], jornada de horas respeitada, hora extra, almoço respeitado, se trabalha à noite tem que ter adicional noturno", elencou.

A reportagem do UOL ouviu figurantes que relataram a rotina. "O trabalho é bem simples, não exige muito conhecimento de atuação ou teórico em artes cênicas. É exigida a pontualidade com rigor nos locais de gravação ou nas emissoras. Temos uma refeição, transporte para um ponto de fácil localização de transporte público. De acordo com o horário de início ou fim, tem um lanche como café da manhã ou ceia", explicou um figurante, que trabalhou por dez anos na função e pediu para não ser identificado.

Os valores dos cachês vão de R$ 60 a R$ 130, para uma média de oito a dez horas de trabalho, de acordo com os profissionais ouvidos. "Não é possível saber a porcentagem cedida para a agência, pois, quando somos convocados, nos informam somente o valor líquido", explicou o ator Marcelo Joy.

Cena de "Malhação - Viva a Diferença" em que Benê (Daphne Bozaski) imagina todo mundo nu - Reprodução/Globo - Reprodução/Globo
Cena de "Malhação - Viva a Diferença" em que Benê (Daphne Bozaski) imagina todo mundo nu
Imagem: Reprodução/Globo
De acordo com a Comunicação da Globo, a emissora trabalha com ao menos dez agências de figuração "experientes no setor e reconhecidas pelo mercado, cujo trabalho acompanhamos durante o ano todo. Quando alguma conduta não é a adequada, substituímos a agência, como em qualquer contratação de terceiros". A Record se limitou a dizer que os figurantes são contratados por produtoras.

"Figurante não é gente. É discrepante a forma como a figuração é tratada em relação aos atores com fala. É o elo mais fraco da corrente", disse um artista.

"No inverno passado, gravando uma novela no Alto da Boa Vista [bairro da zona norte, em uma área mais fria da cidade], estava 13 graus e boa parte da figuração com frio, usando roupas de uma festa em um local tropical e quente. Apenas o elenco podia usar roupões para se aquecer, a figuração não", contou.

O ator também relatou que os ambientes onde os figurantes se alimentam e trocam de roupa também são diferentes do elenco principal.

"Em uma outra situação, depois de horas de gravação noturna, sobraram pouquíssimas cenas, apenas com uma atriz e alguns dublês. A figuração foi liberada, mas fomos impedidos de comer pois o diretor ainda estava gravando, e não podíamos tocar em nada antes deles. Todos iriam comer da mesma comida", completou.

Para Marcelo, apesar dos perrengues, a experiência nos sets de gravação é valida e pode ser boa. "Você faz novos relacionamentos, comunicação com artistas famosos. Para quem quer seguir a carreira artística com certeza é um laboratório incrível", ressaltou.

Segundo ele, a função nunca teve seu valor reconhecido, mas que alguns podem conseguir papéis nas tramas.

"Conheço figurantes que conseguiram personagens. Sou amigo de duas talentosas figurantes/atrizes. Quanto às reclamações, confesso que existem, ainda mais nos dias de hoje com a crise financeira. Nem sempre foi assim e creio, se a crise passar, a figuração nunca terá um reconhecido valor. Tem uma paródia do 'Tá no Ar' [exibida em 2017], que relata de uma forma inteligente, em um clipe de rap, sobre a situação dos figurantes no Brasil."

A esquete do humorístico brinca com a situação dos atores figurantes nos sets de gravação. "92% não tem fala. A cada quatro pessoas mortas em cena, três são figurantes", diz o rap.

O presidente do sindicato lembra que sempre houve preconceito com a classe dos figurantes, mas a oportunidade de atuar na função pode abrir portas.

Juliana Paes, de amarelo, como figurante na temporada de "Malhação" de 1998 - Reprodução/Globo - Reprodução/Globo
Juliana Paes, de amarelo, como figurante na temporada de "Malhação" de 1998
Imagem: Reprodução/Globo
"Há preconceito para quem faz figuração. 'Ah nunca vai ser ator se for figurante', dizem. Não é verdade. Juliana Paes foi figurante. Estar no processo todo, mas sem as câmeras em cima de você, é um aprendizado", afirmou.

Marinho faz um alerta para quem quer desempenhar a função. "O problema desse mercado são as agências que pegam pessoas não qualificadas. Se é artista, sabe esperar, sabe se comportar, sabe que não pode fazer selfie. Não pode chegar lá e querer aparecer, mostrar que tá na Globo, na Record", ensina.