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Chica e Kelé: atores celebram casamento que se mistura à história da TV

Emily Almeida Azarias

Colaboração para o UOL, no Rio

02/08/2020 04h00

A família de Chica e Kelé reunida - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A família de Chica e Kelé reunida
Imagem: Arquivo Pessoal

Feijoada pronta para a satisfação de Chica Xavier, atriz de 88 anos e dona de quase 50 papéis nas últimas cinco décadas só na TV. Apesar de a moqueca de ovos baiana ser sua especialidade, era o prato favorito dela que dominava o cardápio.

Era dia de celebrar com Clementino Kelé, ator de 92 anos, os 64 anos de um casamento que se confunde com a história do teatro e da teledramaturgia brasileira. Hoje, os dois assistem orgulhosos aos netos —também atores— conquistando personagens mais complexos do que os papéis subalternos direcionados a artistas negros, na época em que construíam suas carreiras.

Naquele 7 de julho, a terça-feira ganhou cara de domingo para comemorar a união —que possui como coadjuvantes figuras centrais na cultura do país, como o poeta Vinícius de Moraes e o educador Anísio Teixeira.

A sincronia de Chica e Kelé parece coisa de cinema. Após o 'parabéns', ele emendou uma dezena de musiquinhas de duplo sentido. Chica cantarolou para ele os versos "Meu bem /este teu corpo parece /do jeito que ele me aquece /Amendoim torradinho".

"A nossa melhor fórmula, se é que existe fórmula, é o amor que temos um pelo outro e principalmente pela família que a gente construiu. Kelé foi o meu primeiro namorado, me conhece muito. Sabe das minhas manias, sabe que eu gosto das coisas do meu jeito. Nós somos melhores juntos do que o contrário", diz Chica.

Mas ele logo corrige: "Pode escrever aí: ela diz que é Chica de Kelé, mas eu sou para sempre o Kelé da Chica".

Companheiros de dança

Acostumados à casa cheia, Chica e Kelé encararam uma realidade diferente por causa da covid-19. Anos antes, na boda dos 50 anos, amigos, artistas, intelectuais e filhos de santo ocupavam todos os espaços. Agora o casal passa os dias em um condomínio em Sepetiba, na zona oeste do Rio, onde também fica a Irmandade Cercado do Boiadeiro, da qual Chica é ialorixá. Não recebem visitas nem mesmo de profissionais de saúde. Ainda assim, a data não passou batida —apesar de a lista de convidados ter sido enxuta.

"Meus avós sempre nos ensinaram que tudo é festa, tudo é motivo para comemorar", diz Luana Xavier, neta que segue os passos da avó nos palcos e no sacerdócio, além de apresentar o programa "Viagem a Qualquer Custo", no Multishow. São os netos e filhos que reconstituem a trajetória dos dois, a pedido do UOL.

Clementino Kelé e Chica Xavier na juventude - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Clementino Kelé e Chica Xavier na juventude
Imagem: Arquivo Pessoal
Foi de surpresa que Clementino embarcou no ônibus, na Salvador dos anos 1950, junto de Francisca Xavier, rumo ao Rio de Janeiro. Filho de mecânico de gente importante, como Norberto Odebrecht em pessoa, o charmoso rapaz de terno de linho de alfaiataria e sapatos bonitos se sentou ao lado de Chica para abraçar as ambições da bela parceira de bailes. Ela deixava a mãe, a lavadeira Dionísia Santana Santiago, para estudar arte e conhecer o pai, um baiano que se estabeleceu no Rio, à época capital do país.

"Nessa de dança, eles se tornaram amigos. Trocavam confidências e conselhos amorosos. Até minha avó perceber que estava apaixonada por ele. Aí passou a arrumar defeitos em todas as meninas dos romances dele", ri Luana. Um esbarrão de ombro proposital em frente a um cinema foi o aceno de que não era mais apenas amizade.

O casamento mesmo só aconteceu em julho de 1956, três anos após a partida de Salvador. Chica costurou o próprio vestido e enfeitou o bolo com pipocas. Só então passaram a morar juntos. A festa, em um apartamento em Humaitá, contou com quase todo o elenco de "Orfeu da Conceição", peça de Vinícius de Moraes. Dois meses depois, a atriz estreava nos palcos do Theatro Municipal do Rio.

Kelé, que não tinha planos de atuar ao chegar ao Rio, não só estava no elenco, como aquela já era sua segunda peça. Ele entrou para a dramaturgia ao fazer companhia para a namorada, que ensaiava à noite na Escola de Teatro Pascoal Carlos Magno (na mesma turma de Othon Bastos), e ficou.

A protagonista

Do palco, a parceria alçou os dois aos cinemas e emplacou Chica na televisão. Sua atuação como mulher de Lino, personagem de Kelé em "O Assalto ao Trem Pagador" (1962), encantou o dramaturgo Fábio Sabag (1931-2008), que a convidou para a novela "A Cabana do Pai Tomás" (Globo, 1969).

A partir daí, foram quase 50 personagens na televisão. Uma das mais marcantes, diz ela, foi a Magé Bassã, da minissérie "Tenda dos Milagres" (Globo, 1985). A última foi Cleonice, em "Cheias de Charme" (Globo, 2012). Kelé guarda com carinho o papel de Avelino Rangel em "Pátria Minha" (Globo, 1994) e o pai de santo em "O Xangô de Baker Street" (2001), filme baseado no livro de mesmo nome de Jô Soares.

Clementino Kelé e Chica Xavier (sentados) e os netos Luana Xavier e Ernesto (em pé) - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Clementino Kelé e Chica Xavier (sentados) e os netos Luana Xavier e Ernesto (em pé)
Imagem: Arquivo Pessoal
A centralidade de Chica nunca foi o problema para o marido, diz o jornalista e escritor Ernesto Xavier, neto do casal. A despeito das convenções da geração, foi o que fez com que ele tivesse outra dimensão sobre os papéis de gênero. "Sempre foi o amor mais genuíno, mais palpável que eu já vi, com uma preocupação e uma admiração gigantesca de um com o outro. Eles estão juntos porque querem estar juntos."

O romântico

Enquanto Chica é a prática da casa, Kelé é o romântico. Os netos ainda encontram bilhetinhos dedicados a ela com músicas e poemas escritos por ele. "Meu avô diz todo santo dia que ela é a mulher mais linda do mundo e ninguém acorda como ela", conta Luana. A apresentadora afirma que o avô vaidoso sempre foi mimado pelas mulheres que o rodeiam. "Mas ele sempre se comportou", defende a engenheira química Christina, primogênita dos dois. "Meu pai tem a técnica de contar piada sério. É isso que mantém todos ao redor dele até o final da história."

Para falar dos dois, Kelé diz que seriam necessárias páginas e páginas. Atalhando a conversa, Chica deixa escapar admiradoras de peso do marido. "Eu acho bom você não querer contar muita história não, Kelé. Senão terei que falar nessa entrevista que [a atriz] Ruth [de Souza] te chamava de 'nosso marido' e eu tinha que achar graça, porque ela era uma grande amiga nossa", provoca, dando risada.

Chamada de primeira-dama negra do teatro, do cinema e da TV do Brasil, Ruth morreu aos 98 anos, em 2019. "Ô, Chica, Ruth nem tá mais aqui para se defender. Melhor a gente ir para a próxima pergunta", responde Kelé.

'Nossa cara precisa estar lá'

Frequentemente convidada a interpretar empregadas domésticas ou mulheres escravizadas —quase sempre com pouca importância na trama— Chica Xavier optou por disputar a dramaturgia de dentro.

"Ela ia ressignificando e humanizando as personagens dando a elas dignidade e um novo sentido. Então, os autores começaram a escrever para ela. Meu pai a mesma coisa", completa o cineasta e professor Clementino Junior, filho do casal.

A luta por representatividade negra, em voga hoje em dia, não é novidade para o casal, nem mesmo naquela época. "Eles não eram militantes de partido ou coisa do gênero. Mas, sempre que tinham acesso à imprensa, falavam sobre a temática racial e as dificuldades do povo negro. Viraram referências por isso, mesmo na ditadura", diz Junior.

"O lema da minha avó é: a nossa cara precisa estar lá", explica Luana, que constantemente escuta de amigos que Chica desperta neles a memória da própria avó, tia ou mãe. "Ela coloca essa verdade e ternura que fazem com que a figura dela seja tão forte", diz.

Os filhos agregados

Dos filhos biológicos e netos, a única que não seguiu carreira na arte foi Christina, que virou engenheira química. Luana lembra que, ainda menina, já namorava o teatro, mas ouviu da avó que buscasse carreira alternativa. "Ela contou como o trabalho artístico é difícil. Ainda mais quando você é mulher negra". A neta ouviu e se formou em serviço social.

O conselho vinha de experiência própria. Ao deixar a Imprensa Oficial em Salvador, onde trabalhou desde os 14 anos como aprendiz de encadernadora, Chica recorreu ao educador Anísio Teixeira (1900-1971) para conseguir emprego para ela e Kelé na capital. Ela conhecida o ex-secretário de Educação da Bahia porque sua mãe havia trabalhado para ele. No Rio de Janeiro, Chica e Clementino conciliaram a carreira artística com cargos (às vezes, mais de um) no Ministério da Educação.

Até hoje, Anísio Teixeira, tido como padrinho de Chica, está presente nas paredes, nas estantes de livros e nos álbuns de família do casal. A educação como instrumento para transformar sempre foi endossada em casa. Não à toa, todos os filhos têm formação de nível superior.

O apoio de amigos durante a vida foi retribuído a quem precisasse. Foi assim que o casal ganhou um quarto filho. O diretor e ator Miguel Falabella estava abalado pela perda da mãe biológica enquanto os dois trabalhavam na novela de "Amor com Amor se Paga" (Globo, 1984). Encontrou refúgio junto a Chica. "Virei irmão de Cristina, Isabela e Júnior. Sou padrinho do filho de Izabela, de Oranyan. Passei a frequentar mais a família e, aí sim, me aproximei do Kelé."

Miguel Falabella, Chica Xavier e Yara Lins em "As Noivas de Copacabana"  - Jorge Baumann/Globo - Jorge Baumann/Globo
Miguel Falabella, Chica Xavier e Yara Lins em "As Noivas de Copacabana"
Imagem: Jorge Baumann/Globo

Depois de voltarem a trabalhar juntos na série "As Noivas de Copacabana" (Globo, 1992), Falabella escreveu personagens para ela em "A Lua me Disse" (Globo, 2005) e "A Vida Alheia" (Globo, 2010), para que atuasse com os netos Luana e Ernesto. O diretor escreveu ainda o prefácio do primeiro livro da atriz, "Chica Xavier Canta sua Prosa" (1999, Topbooks), em que ela apresenta pontos para orixás, cantigas e orações de autoria própria. "Eles têm essa elegância, essa nobreza, que é fundamental. É maravilhoso! Ela é minha borboleta amarela de Iansã", diz o ator.

Outros dos filhos que a vida trouxe é o ator e escritor Lázaro Ramos. "Eles são a Bahia possível! Dois artistas que eu admirava e com quem queria ser parecido, de quem queria estar próximo e saber da trajetória", enaltece. Além dos encontros na gravação da novela "Duas Caras" (Globo, 2007), ele levou a público um pouco do clima da casa em Sepetiba —onde é frequente visita— em um episódio de "Espelhos", programa do Canal Brasil. Queridinho de Kelé, Lázaro o dirigiu no curta-metragem "Como as Nuvens São" (2011).

Domingo de casa cheia

A filha Christina lembra que os fins de semana em família eram sagrados, durante sua infância. Os pais acordavam e, ainda na cama, conversavam sobre assuntos como o significado de ser negro na sociedade brasileira. "A gente entrava no meio dos dois e participava também. Nessas conversas é que eles iam nos educando, contando histórias e explicando as coisas. Meu pai falava sobre assumir a nossa negritude, os cabelos naturais. Nós fomos uns dos primeiros a importar o pente garfo."

O hábito se transformou, mas não perdeu a essência. Morando em São Paulo, Ernesto diz que a casa em Sepetiba virou uma comunidade familiar. Agora, é seu Kelé quem aguarda o neto para colocar o papo em dia. "Meu avô fica esperando eu chegar lá para a gente falar sobre os acontecimentos, a política e as questões raciais."

Os netos e filhos não veem a hora de a pandemia passar e ser novamente domingo de casa cheia, para se aninharem junto de Chica e ouvirem as histórias e as piadas de Kelé.