A arte de provocar

Diretora de "A Dona do Pedaço", Amora Mautner diz que é provocativa no trabalho e intensa na vida pessoal

Leo Dias Colunista do UOL Estevam Avellar/TV Globo

Eu não conhecia Amora Mautner pessoalmente, apesar de nos falarmos há algum tempo por WhatsApp. Mas a sua fama eu já sabia qual era: a de ser uma mulher temida dentro da Globo. Diretora de "A Dona do Pedaço", ela acumula dezenas de novelas em seu currículo e é conhecida por ser intensa, perfeccionista e exagerada.

Quando entrou na enorme sala de seu apartamento, na quadra da Praia do Leblon, onde eu a aguardava para esta entrevista, muitas informações se confirmaram em poucos segundos. Falando alto, rápida nas palavras, inquieta, Amora, 44 anos, exalava vida. Parecia um vulcão em erupção. Raramente dá entrevista, até porque a TV Globo sabe que a diretora é verdadeira demais. Amora é profunda.

Filha do tropicalista Jorge Mautner, ela lembra a infância, quando dividia a casa com o pai, a mãe (a historiadora Ruth Mendes) e o namorado da mãe. "Normal para o final dos anos 1970", pondera. Para mim, nascido no mesmo ano que ela, no Méier, aquela configuração familiar não parecia assim tão normal. "Mas o Méier vive dez anos atrás", retruca. Assim é Amora.

Como diretora, assinou obras que entraram, de formas distintas, para a história recente da TV: da sensacional "Avenida Brasil" (2012) à decepcionante "A Regra do Jogo" (2015).

Não é tarefa fácil acompanhar sua inteligência. Por diversas vezes tive que interromper a entrevista e dizer que não estava entendendo nada do que ela falava. O vocabulário rebuscado pode ser fruto da vasta cultura ou apenas uma fuga estratégica de algumas perguntas.

Ela mistura Deus com física quântica, mostrando um discurso espontâneo, embasado e consistente. Amora é coerente, cheia de contradições e, por isso mesmo, fascinante. Sua franqueza, suas histórias e seu autoconhecimento impressionam.

Com vocês, a mulher que jamais passa incólume na TV Globo.

Estevam Avellar/TV Globo
Estevam Avellar/TV Globo

Quem é Amora Mautner?

O Walter Avancini, um dos meus mestres, sempre me dizia: "Amora, quando falamos de um personagem, precisamos definir um DNA para ele. Por exemplo: a personagem é bondosa. Mesmo que no meio da história ela vire uma assassina, vai continuar abrindo a porta de um jeito bondoso. Ela tem que manter esse DNA". Na minha opinião, nós mudamos o tempo todo, é um ato inteligente. Mas o DNA não muda. Comigo, a subjetividade impera sobre a objetividade. Para mim o mais importante é estar na vida de maneira presente, conseguir interpretar o que é invisível e poder usufruir disso. Eu tento humildemente captar a energia de um set e colocá-lo na frequência que eu quero e que eu considero que seja melhor para a cena. Nem sempre é fácil ser agradável ou delicada. Às vezes, preciso de uma cena mais "tcham" [forte] e tenho que provocar.

Você é uma mulher provocativa?

Sou provocativa para chegar à minha meta de trabalho. Só sou provocativa profissionalmente, na vida não. Na vida eu sou intensa. Mas tenho estado cada vez menos intensa, acho que pela idade. Uma das coisas boas de envelhecer é que começamos a ter medidas do custo-benefício das coisas. Eu tenho estado muito mais paciente do que já fui.

Qual foi seu extremo de impaciência no trabalho? Algo de que você não se orgulha?

Acho que por conta de minha intensidade, ter escolhido uma forma menos delicada de dizer, por exemplo, o que representa as minhas verdades. Isso pode ter magoado alguém, mas sou 100% profissional. A meta é sempre o que vai ao ar, e trabalho com pessoas profissionais também, que, de forma geral, pensam como eu. Portanto, é muito raro dar problema.

Posso citar um: você estava numa livraria no Leblon, encontrou uma atriz e ela pediu uma oportunidade. Aí você diz: 'Amor, você é atriz de uma personagem só'.

Não foi bem assim... Eu estava no lançamento de um livro, e ela veio falar comigo. Eu a conheço há muito tempo e a admiro. Ela veio me dizer que gostaria de fazer um trabalho de drama. E eu falei: "Acho incrível, mas você quer mesmo? Porque você está tão confortável no seu lugar de comediante. Para comediante é difícil, é diferente". Isso não quer dizer que eles não queiram e não possam atuar. A questão é se valeria a pena para ela.

Já houve situações em que o ator não fez o que eu considerava a melhor opção e tive que ser mais incisiva. Mas priorizo escutar o elenco, gosto da troca. Estudo muito, o trabalho está dentro de mim. Respiro a novela. Eu vou ensaiar a cena querendo ver o que os atores têm para me dar de novo, diferente do que eu já sei. Quando não tem isso, aí fica complicado.

Sobre usar termos pesados durante as gravações

Raquel Cunha/TV Globo

Você já errou na escolha do elenco?

Todas as vezes eu erro em alguma coisa, inclusive nessa escolha.

Até em "Avenida Brasil"?

"Avenida Brasil" eu fiz muito com outras pessoas. Quem mais escalou em "Avenida Brasil" foi o João Emanuel Carneiro [autor] e o Ricardo Waddington [diretor de núcleo]. Na novela, Adriana Esteves, por exemplo, estava selecionada para outra personagem, e Ricardo decidiu mudar. Uma decisão genial!

O sucesso de "Avenida Brasil" subiu à cabeça?

Foi um fenômeno. É humano tirar o pé do chão. Eu acho que o fato de a novela ter sido tão fenomenal deixou todos os envolvidos meio eufóricos, talvez isso... Eu não sei se subiu à cabeça... Não que eu não seja vaidosa, eu sou sim, bastante. Tenho muito prazer na minha criação.

Você teve que provar alguma coisa na sua vida?
Sempre. A gente tem que provar o tempo todo, inclusive. A vida é feita de ondas. Às vezes estamos de um jeito. Outras vezes de outro, melhor ou pior. A natureza não produziu nada que não esteja em constante movimento. É claro que nunca estamos preparados para a queda, mas pode ser uma forma de reavaliar a vida e amadurecer. Faz três anos que me dedico à física quântica, estou obcecada por esse assunto. Se você me perguntar qual é o meu sonho de vida, vou te falar: é com 65 anos ter dinheiro suficiente para me dividir entre viver no Brasil e fora, e estudar física quântica. Só penso nisso. É uma "religião". Acredito no universo, num Deus de energia invisível. Acredito que, quando fazemos o bem, ele volta.

Parei de ler críticas sobre mim na época de "A Regra do Jogo", porque estavam pegando muito no meu pé. Pode ter sido o efeito de "Avenida Brasil", todo o mundo queria aquilo de novo. São fenômenos que não acontecem sempre. Inventaram muitas coisas que nunca aconteceram. Como se tivesse briga e não tinha. Eu sou intensa, mas sou zero tirana. Eu escuto muito. E não me levo tão a sério.

A respeito dos comentários envolvendo seu nome

E quem é a menina Amora Mautner, que é estranha, que não é normal?

Eu acho bom não ser normal. É o maior orgulho que eu tenho. Eu nasci numa bolha em que ser como você é pode ser bom. Tive uma educação muito livre nesse sentido. Eu nunca fui cobrada pelos meus pais para ter uma profissão careta, com carteira assinada. Mas em relação a sexo, por exemplo, eu sempre fui muito careta, acho que por ver tanta liberdade ao meu redor. Nasci em 1975, mais para o final dos anos 1970, então era muito livre. O exercício das pessoas era de liberdade.

Na sua região, na minha não. Eu Nasci no Méier.

A sua era careta. O Méier está dez anos atrasado. É diferente pela bolha. Muda de bolha e muda tudo. A minha bolha é Preta Gil e Moreno Veloso. Você vê ali um DNA de liberdade que vem dessa criação.

Dizem que seu tom de voz é sempre elevado.

Era... Eu melhorei isso um pouco. Esse tom de voz elevado vem de uma parte "menos boa" do excesso de liberdade. Eu fiquei mais preocupada em falar alto e incomodar as pessoas. E o tom alto é interpretado como má educação e deselegância. Eu entendi isso. No estúdio, uso um "talkback" [sistema de comunicação aberto], mas também falo mais de perto com as pessoas. Tem funcionado melhor. Vi que poderia ser entusiasmada e intensa, mas sem atrapalhar o espaço acústico ou vibracional de quem é mais calmo. O ator para mim é a alma da cena. Ele não pode estar com a energia em coma.

Estevam Avellar/TV Globo Estevam Avellar/TV Globo

Vida a dois

"O que me dá tesão em um homem é inteligência, sem dúvida. Profundidade e inteligência. Namoro o Arnon Affonso há cinco anos. Não fizemos nenhuma cerimônia, mas pode ser que eu faça. Ele mora no Rio e em Nova York, é vice-presidente da NBA America Latina, então trabalha muito lá. Ele é o amor da minha vida!

Imagino envelhecer com o Arnon, nós dois juntos, eu estudando física quântica, ele fazendo o que quiser, e a gente morando em lugares em que a gente possa ler.

Antes disso, quero fazer projetos mais autorais. Um filme, por exemplo. Tenho um longa que eu ia fazer com o Rodrigo Teixeira, mas não desenvolvemos. Estou em busca de uma história. Vai ser uma experiência nova para mim. É um grande desafio. Longa é para a vida. Também quero fazer séries. Eu gostei muito de fazer 'Assédio'."

Reprodução/Instagram

Como é a relação com a sua filha? É como o seu pai era com você?

Não. Eu encaretei muito. Minha filha tem 11 anos e respeita vários limites. Tem hora para tudo. É o meu lado austríaco na educação. Ela tem disciplina, mas precisa aprender sobre a importância da subjetividade.

Um recado, em primeira pessoa.

Acho que a vida é uma chama. A natureza não produziu nada que não esteja em movimento. O que eu gosto da vida é o movimento do presente.

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