Uma atriz, duas personagens de peso. Andréa Beltrão, 55, encarna Antígona no teatro --peça de Sófocles escrita há quase 2.500 anos que, em suas palavras, "assume grande contemporaneidade após o golpe contra Dilma [Rousseff]"-- e a carismática e polêmica apresentadora de TV Hebe Camargo no cinema e em uma série para TV.
A atriz recebeu a reportagem do UOL no Teatro Poeira, em Botafogo, zona sul do Rio, que pertence a ela e à atriz Marieta Severo e que, neste ano, perdeu o patrocínio da Petrobras. Durante uma hora e meia de entrevista, Beltrão falou sobre os cortes de verba para a cultura sob o governo Jair Bolsonaro (PSL), a condição de artistas em tempos de polarização nas redes sociais e admitiu "desespero" com a preparação para viver Hebe.
O convite para estrelar "Hebe - A Estrela do Brasil" surgiu há três anos nos bastidores da série Tapas e Beijos e pegou a atriz de surpresa.
No começo, uma euforia de 'poxa, que barato', mas rapidamente um desespero, porque vi que era uma pessoa muito singular, de personalidade forte, com características marcantes. Pensava: 'Não vai dar'. Fisicamente não pareço com ela, sou carioca, o sotaque dela é de paulista de Taubaté.
A família de Hebe autorizou para o filme o uso de todas as peças que pertenceram a ela, como joias e sapatos de grife. "A questão interessante não era usar um sapato Chanel [grife francesa], mas é que era dela, tinha a marca do pé dela, o suor do pé dela, o salto gastado do jeitinho que ela andava, isso dizia muito."
O filme sobre a apresentadora, que morreu em 2012 em decorrência de um câncer aos 83 anos, estreia em setembro e a série sobre a vida dela deve ir ao ar na Globo em janeiro de 2020.
Hoje, se viva, Hebe estaria com 90 anos, e Beltrão diz acreditar que "ela estaria gritando sobre o feminicídio, ela estaria batendo nesse assunto e contra o assassinato de gays e LGBTI, acho que pra ela isso seria a morte, seria uma coisa incompreensível, da selvageria que se fazem com as pessoas".
Casada há 25 anos com o diretor Maurício Farias, e apaixonada, Beltrão comemora por ser dirigida por ele em Hebe e na próxima novela que fará na Globo no ano que vem. "Vou fazer uma novela da Lícia Manzo, de quem sou fã, com direção do Maurício Farias. Como sou casada com ele, acho que me dá emprego, né?", brinca ela, há 18 anos afastada das novelas.
Quando decidiu montar Antígona --em cartaz até o fim de julho--, que mostra o confronto entre o Estado e o cidadão, o diretor Amir Haddad a questionou sobre qual seria o motivo para querer encená-la. Na ocasião, não tinha respostas objetivas.
Beltrão relata que o motivo veio à tona em 2016 quando Dilma teve o mandato definitivamente cassado, sendo substituída pelo então vice Michel Temer (MDB). "De repente, tudo virou de cabeça para baixo, ela foi deposta por um golpe e tudo aconteceu, e essa peça assumiu uma contemporaneidade triste", observa.
Impedida de enterrar o irmão Polinice sob pena de morte, Antígona enfrenta o rei Creonte, tenta enterrá-lo com as próprias mãos e acaba emparedada viva.
"A [personagem] Agave arranca a cabeça do próprio filho Penteu. O Creonte enterra a própria sobrinha viva, emparedada numa gruta... Acho que isso não é uma novidade nossa, a gente não está criando nada de novo, acho que isso é humano, é terrível... É muito impactante ver que o que está no jornal está aqui."
Ante os cortes de verbas para a cultura, a atriz lamenta, mas diz ter esperança. "As manifestações artísticas jamais deixarão de existir sob qualquer governo, sob qualquer pena."