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Em nova biografia, Jô faz revelações sobre Figueiredo, Maluf, FHC e Doria

Mauricio Stycer

03/12/2018 05h01

A trajetória de Jô Soares, nas suas próprias palavras, pode ser sintetizada assim: "Foram sessenta anos de vida profissional, 28 anos de entrevistas, 14.426 conversas, cerca de 1.300 dias de programas de humor na TV, trezentos personagens, 43 anos fazendo one-man shows, dirigi 24 peças de teatro e atuei em onze, foram dez filmes como ator e um como diretor, oito exposições como pintor, um show como músico e cantor, quinze programas de televisão como redator, nove livros, contando com este".

É claro que as memórias desta vida e carreira não caberiam em um único volume. Quem leu o primeiro, publicado em 2017, teve o prazer de conhecer um pouco da infância do Gordo, a relação carinhosa com os pais, o seu primeiro casamento e a convivência com o filho autista. Além disso, se divertiu demais com as histórias sobre os seus primeiros passos profissionais, até o final da década de 1960.

Novamente escrito em parceria com o jornalista Matinas Suzuki Jr., o segundo volume, que se inicia em 1970, mantém o tom. As lembranças são narradas como se fossem um show de humor, com graça e verve. Jô emenda uma história na outra, da forma como elas vão aparecendo, num jorro de ideias e lembranças tão caótico quanto engraçado.

O livro reconstitui bastidores dos diferentes programas de humor que fez na Globo: "Faça Humor Não Faça Guerra" (1970), "Satiricom" (1973), cujo título é uma junção das palavras sátira e sitcom, "O Planeta dos Homens" (1976), dos bordões "não precisa explicar, eu só queria entender" e "o macaco tá certo", e "Viva o Gordo" (1981).

Jô dedica palavras de muito carinho a inúmeros profissionais com quem trabalhou, como Paulo Silvino, Agildo Ribeiro, Chico Anysio e Max Nunes. Revê a sua tumultuada relação com Boni, a quem gosta de chamar de Bonifácio, fala bastante de sua religiosidade (é cristão) e de sua relação com dom Hélder Câmara (1909-1999), e confessa seu encanto pelo You Tube, esse "imenso museu da imagem e do som global".

Tão agradável de ler quanto o primeiro volume, a segunda parte de "O Livro de Jô" tem como diferencial o espaço generoso que o autor abre para recordações e comentários sobre alguns dos principais protagonistas da política brasileira nos últimos 50 anos.

O primeiro deles é o general Garrastazu Médici (1905-1985), presidente do país no período mais repressivo da ditadura militar. Uma foto de Jô ao lado do ditador, registrada em 1972, voltou a circular em 2015, buscando constranger o apresentador após a entrevista que fez com a então presidente Dilma Rousseff.

No livro, Jô lembra que a foto com Médici foi feita no dia da inauguração da TV a cores, na Festa da Uva, em Caxias do Sul. Walter Clark, então o principal executivo da Globo, convocou algumas estrelas da casa para prestigiar o evento, entre quais Francisco Cuoco e Jô. "Inevitavelmente, uma foto minha ao lado do Médici, os dois sorrindo, foi publicada e recebi muito patrulhamento por isso", conta.

Ao jornalista Tarso de Castro (1941-1991), um dos que o recriminou pela foto, Jô disse então: "Tarso, eu estava cumprindo meu contrato de trabalho. Fui escalado junto com vários artistas da Globo. Não me ofereci pra ir a Caxias". Na época, Jô era processado pelo governo Médici por causa de um texto irônico publicado em "O Pasquim".

No início da década de 1980, Jô conta que Silvio Santos, batalhando pela concessão dos canais que iriam formar o SBT, lhe pediu um favor bizarro – que fizesse um show na Feira de Providência em Brasília para agradar a primeira-dama Dulce Figueiredo (1928-2011). Jô ainda trabalhava na Globo. "Eu pago a lotação da casa e do show. Preciso que você faça isso por mim", disse Silvio, segundo o relato do autor.

Jô conta que, ao chegar a Brasília, se deu conta que havia esquecido no Rio um boá vermelho, acessório que usava no espetáculo. "Quase na hora do show eu recebo uma caixa de papelão com o carimbo: Ministério da Aeronáutica – material secreto", conta. Era o boá, que alguma autoridade mandou buscar no Rio.

Apesar da bajulação, feita a pedido de Silvio Santos, Jô afirma que não contava com a simpatia do general João Figueiredo. "Eu fiquei com a impressão que o Figueiredo não gostou muito de eu ter feito um show para a primeira-dama", escreve. Uma vez, conta, ao se encontrar com o então presidente, que havia se submetido a uma cirurgia cardíaca, Jô brincou: "Presidente, vê se não fuma mais". Ao que o general teria respondido: "Então mete o pau no fumo em vez de meter o fumo em mim".

Em outra história surpreendente, Jô relata que, em 1982, foi procurado por um político (não nomeado no livro) que desejava que ele ajudasse a candidatura de Paulo Maluf a deputado federal. Segundo o livro, este político ofereceu dinheiro a Jô em troca de manifestações simpáticas ao candidato. Jô negou. "E quanto custa para você não citar mais o nome dele?"

Em 1982, Maluf renunciou ao governo do Estado de São Paulo, dando lugar ao vice-governador José Maria Marin, para disputar uma vaga de deputado federal. Foi eleito com 672.927 votos – o mais votado, até então, na história do país. Mais de três décadas depois, o primeiro vive em prisão domiciliar em São Paulo e o segundo está preso em Nova York.

Outro caso que eu não conhecia envolve o então deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), famoso por resumir o trabalho dos políticos com a máxima "é dando que se recebe". Segundo Jô, ele o convidou para ser candidato à Presidência da República pelo PMDB. "Não tenho competência nem para ser vereador", respondeu o humorista, sem precisar a data em que ocorreu este convite.

Com prazer, naturalmente, Jô se recorda do seu talk show no SBT, lançado em agosto de 1988. Era o seu grande sonho e, por circunstâncias históricas, logo se transformou num dos programas de maior repercussão da TV brasileira. "A sucursal noturna do impeachment", relembra, evocando as muitas entrevistas que fez com políticos e analistas sobre o processo de afastamento do presidente Fernando Collor, em 1992.

Em um momento raro do livro, Jô faz críticas duras ao "estilo autoritário" de Ciro Gomes, por conta de "uma inverdade". O político sustenta que o apresentador, no início dos anos 1990, promoveu um jantar com artistas para pressionar o PSDB a participar do governo Collor.

Outro alvo de críticas é o governador eleito de São Paulo, João Doria. Em 1989, ao abraçar o humorista, o então ex-presidente da Embratur colou em suas costas um adesivo da candidatura de Collor. "É uma pessoa pequena", escreve Jô. Doria negou o episódio durante a campanha eleitoral em 2018. "Será muito interessante ver quem vai passar pra história como mentiroso, se eu ou ele", escreve Jô.

Em outra passagem curiosa, Jô revela que, após entrevistar Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, em 1993 ou 94, o estimulou a disputar a Presidência. "Se você não pegar o barco agora, não vai pegar nunca mais', teria recomendado.

"Mesmo reconhecendo o mérito de Lula por ter enfrentado como ninguém alguns problemas críticos da nossa desigualdade social inumana, e mesmo tendo muita simpatia pelo PT nas suas origens, penso que, por razões diferentes, as duas presidências mais importantes sob as quais vivi foram as de Juscelino Kubistchek e a de Fernando Henrique Cardoso", escreve Jô. "FHC fez um governo de arrumação da casa, e isso nunca dá popularidade, mas sem ele teria sido muito mais difícil pra Lula conquistar a imensa força política obtida durante seu período como presidente".

Por fim, Jô mais uma vez se justifica pela entrevista que fez com Dilma em 2015: "Se eu estivesse preocupado com a minha popularidade, não teria dado esse passo, mas eu o considerava parte do dever de um programa que tinha acompanhado tão de perto a política brasileira das três décadas anteriores, quase sempre dando voz aos seus próprios atores políticos".

E, depois de lembrar que sofreu ameaças por causa da entrevista, acrescenta: "Fiz todas as perguntas a se fazer, as mesmas que todos queriam que eu fizesse. Só não entrei em debate com a Dilma. Eu estava lá pra perguntar. Também a tratei com gentileza e bom humor, essas coisas fazem parte do meu ser."

Jô encerra o livro com uma recomendação e um balanço: "Se você tem o privilégio de poder parar quando sentir a sua missão cumprida em algum setor, pare. Sempre haverá outras coisas pra fazer. Encho a boca pra dizer isto; não houve um momento da minha vida em que eu fiz alguma coisa da qual me envergonhasse. Todas as minhas conquistas foram com a minha cabecinha, com o esforço do meu trabalho e a ajuda de muita gente boa."

"O Livro de Jô – Uma autobiografia desautorizada", de Jô Soares e Matinas Suzuki Jr. (Companhia das Letras, 338 págs., R$ 69,90).

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Sobre o autor

Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).

Contato: mauriciostycer@uol.com.br

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