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Tia Má: 'Racismo é um câncer social, não pode ser reduzido a mimimi'

Colunista do UOL

07/04/2020 12h00

Resumo da notícia

  • Jornalista e influencer fala da importância da igualdade e da representatividade
  • Ela conta que os pais optaram por morar na periferia e dar a ela e à irmã educação de qualidade
  • E revela que o filho pequeno diz que quer ser presidente; "Ele vai ter outro desafios"

Foi dando conselhos em seus vídeos sobre racismo, autoestima e machismo que a jornalista Maíra Azevedo ganhou diversos "sobrinhos" e foi chamada de Tia Má. Em um bate-papo com o colunista Leo Dias, a baiana arretada de 39 anos, que já foi ameaçada de morte e chamada de macaca, mostra por que é um ícone de representatividade e um sucesso na internet.

"A população brasileira, na sua maioria, é formada por pessoas negras, mas isso não reflete nos espaços de poder. E falar sobre isso não pode ser reduzido a um conceito bobo e antiquado de vitimismo ou de mimimi. O racismo é um câncer social, que impede que a gente tenha a possibilidade de conhecer novos talentos todos os dias", dispara Tia Má.

A jornalista está lançando o livro "Como se Livrar de um Relacionamento Ordinário", no qual fala, a partir da própria experiência, de relacionamentos afetivos, autoestima e amor-próprio: "É uma tentativa de mostrar para essas mulheres que a gente não pode continuar nem permanecer em nenhuma relação por conta da dependência afetiva, que ainda hoje é muito presente, muito perversa e que tira milhares de vidas, de várias mulheres todos os dias".

Tia Má relembra sua infância e conta que seus pais optaram por morar na periferia para poder dar educação de qualidade a ela e sua irmã: "Sempre estudei em escola particular. Então, o que acontecia? Muitas vezes eu era hostilizada porque era preta e pobre. Meu pai sempre teve carro, mas era um carro muito popular, um carro inferior. As pessoas davam risada. As minhas coleguinhas iam para a Disney. Nunca fui para a Disney, até hoje. Mas o que a gente tinha? A gente tinha educação de qualidade".

Mãe de Aladê, de 11 anos, a influencer ainda discute a importância de falar sobre a autoestima na educação de uma criança negra: "A autoestima e você explicar para ela que o racismo não é um problema dela. Porque se a gente não explica isso, muitas vezes a criança se responsabiliza por uma atitude racista que alguém tem com ela. Esse é o meu maior desafio: tentar mostrar para o meu filho que se alguém teve uma atitude racista, o problema é do racista, não dele".

Leia, abaixo, trechos da entrevista.

Tia Má - Divulgação - Divulgação
A influencer e jornalista Maíra Azevedo, conhecida como Tia Má
Imagem: Divulgação
Leo Dias - A questão de que os negros têm que ter um espaço igualitário deveria ser uma questão já natural, mas infelizmente a gente não vê isso. Você concorda comigo?

Tia Má - Com certeza! A gente tem um problema, inclusive matemático, porque somos nós a maioria da população. A população brasileira, na sua maioria, é formada por pessoas negras, mas isso não reflete nos espaços de poder. E falar sobre isso não pode ser reduzido a um conceito bobo e antiquado de vitimismo ou de mimimi. A gente precisa falar sobre isso, porque é essa falta de representatividade e representação de pessoas negras nesses espaços que faz com que a gente seja uma sociedade tão desigual e tão boba ainda. O racismo é um câncer social, que impede que a gente tenha a possibilidade de conhecer novos talentos todos os dias.

Quando você tira de uma pessoa preta a oportunidade de ocupar aquele lugar por conta da cor da sua pele, você está tirando também da sociedade a oportunidade de conhecer alguém que pode transformar o mundo.

Você está lançando um livro agora. Me conta desse livro.

Então, vou até pedir para o meu filho pega para eu mostrar. O nome dele é Aladê, é um nome africano, quer dizer "o dono da coroa".

Maravilhoso. Aladê, adorei esse nome.

Então, fiz uma coletânea de relacionamentos ordinários que eu tive, chama-se "Como se Livrar de um Relacionamento Ordinário". Colecionei essas relações ordinárias porque acredito que a gente pode aprender com o erro do outro, sabe? Não é uma tentativa de ser professora, mas de socializar a informação, de contar como é que eu sobrevivi a essas histórias, quais foram as minhas iniciativas para ir aprendendo e mostrar para as mulheres que a gente não pode continuar nem permanecer em nenhuma relação por conta da dependência afetiva, que ainda hoje é muito presente, muito perversa e que tira milhares de vidas todos os dias.

Dependência afetiva. Você está indo além do que imaginava então. Além do que eu tratava, que era a dependência econômica, que prende muitas mulheres a relacionamentos danosos, né? A relacionamentos que não levam ninguém a lugar nenhum. Mas você fala em dependência afetiva, quer dizer, é o fato de a mulher dizer que está solteira. Ela não aceita, ela acha que o casamento é uma resposta à sociedade, que você é bem-sucedido emocionalmente, talvez.

Não é nem que ela não aceite. Existe uma cobrança Leo. Observe: você deve ter amigos homens e mulheres. Um homem de 30 anos, quando ele se casa, todo o mundo acha que ele se casou muito cedo. Uma mulher aos 30 anos que ainda não se casou, ou não tem uma relação ainda séria, todo o mundo começa a questionar o que ela está fazendo da vida. É aí exatamente que está o erro. A gente educa homens e mulheres de formas distintas. O homem precisa passar mais tempo ficando com várias, e a mulher precisa, quanto mais cedo, encontrar alguém para se casar.

Então, a gente encontra histórias de mulheres que são o arrimo da família, que têm poder aquisitivo, que têm a situação financeira organizada, mas ainda assim não conseguem se desvencilhar daquela relação, por conta dessa cobrança machista que determina que uma mulher, para ser bem-sucedida, precisa ter um companheiro. Quando, muitas vezes, aquela mulher está inclusive adoecendo emocionalmente, psicologicamente e fisicamente por conta daquela relação.

Quero entender o que vai surgir dos relacionamentos de pessoas que passaram a conviver 24 horas por dia por conta da quarentena. Quero saber se vai ter muita separação, sabe?

Vão acontecer duas coisas, Leo. E vou escrever sobre isso. Este período de isolamento vai fazer com que muitas relações acabem, porque você vai descobrir coisas sobre o seu parceiro, sobre a sua parceira, que vão ser uma grande decepção. Posturas e comportamentos que antes você não via. Porque a gente passa a maior parte do nosso dia no trabalho. E agora, tendo que conviver 24 horas, vai ser desesperador. E, ao mesmo tempo, vai criar também em outros casais uma aproximação muito maior, porque vai despertar um senso de cumplicidade muito grande. Você vai passar a ter naquela pessoa a sua maior confiança, por exemplo.

Vamos falar sobre educação. A principal questão na educação de uma criança negra é a autoestima?

A autoestima e você explicar para ela que o racismo não é um problema dela. Porque se a gente não explica isso, muitas vezes a criança se responsabiliza por uma atitude racista que alguém tem com ela. Esse é o meu maior desafio: tentar mostrar para o meu filho que se alguém teve uma atitude racista, o problema é do racista, não dele.

Mas você acha que as crianças pensam isso? Que o problema é delas por serem negras?

Sim, muitas vezes. Muitas vezes a criança é rejeitada, recebe um apelido —porque a gente confunde racismo com bullying e são coisas distintas. Às vezes, aquela criança está sendo isolada, [pois há] muita gente perversa, porque tem características 'negroides'. Deixam aquela criança de lado, ridicularizam, menosprezam, desqualificam.

Uma coisa que digo muito para o meu filho é que ele não pode correr dentro do shopping, porque alguém pode pegar ele e botar para fora. Eu nunca deixei meu filho correr, como qualquer criança brinca. Eu digo: 'Não corra dentro do shopping'. E isso é muito perverso!

Nunca tinha pensado nisso! Um negro correndo dentro de um shopping é diferente de um branco correndo dentro de um shopping.

E isso é muito cruel, Leo! A gente precisa falar sobre isso. Nesse processo, todas as vezes que eu, como mulher preta, me posiciono sobre isso, sempre tem alguém para tentar desqualificar a minha fala. Por isso é importante que outras pessoas brancas se posicionem e falem. Porque é mais fácil alguém ouvir de outro branco e concordar. Porque quando eu falo, fica parecendo que estou maximizando a situação. As pessoas não conseguem entender como é doloroso para mim quando tenho que dizer ao meu filho que ele não pode correr, que ele não pode botar determinadas roupas. Porque foi criado um estereótipo —por isso que a gente precisa combater estereótipos— e a população negra está o tempo todo associada à marginalidade. A gente precisa combater essas coisas!

Você tem pretensões políticas?

Não. A minha pretensão política é ocupar mais espaço na mídia.

Mas você já foi procurada por algum partido político?

Ah, já. Mas não tenho interesse, não. Pelo amor de Deus. Acho que posso representar a parte boa tendo um programa meu na televisão. Posso fazer a diferença ocupando espaço nas emissoras. Porque isso também é política. Você colocar gente preta nos meios de comunicação também é uma política de existência, de assegurar a sobrevivência.

Tia Má - Divulgação - Divulgação
Tia Má fala sobre racismo e a importância da representatividade
Imagem: Divulgação
Porque a população precisa se ver na televisão. A população precisa se ver no vídeo. A população precisa se ver representada. E não só os negros. Os gordos, a população homossexual, todos né?

É importante. Você vê que uma sociedade preconceituosa deixa de lucrar. Existem dados que comprovam que, quanto mais representatividade tem um espaço, mais ele lucra. Por exemplo: se sou uma mulher lésbica e vejo naquele lugar mulheres lésbicas que são bem representadas, são bem recebidas, vai ser natural que eu e as pessoas que também fazem parte desse grupo social frequentem aquele lugar. Por exemplo: "Pantera Negra", o filme da Marvel, foi o filme da franquia que mais lucrou, porque foi o primeiro produzido e protagonizado por pessoas pretas. Existia uma ânsia, uma angústia tão grande de se ver na televisão, de se ver no cinema, que assim que esse filme estreou bateu todos os recordes. Nenhum outro filme da Marvel lucrou tanto. As pessoas não percebem que existe uma sede e que pode ser revertida em situação econômica.

As pessoas podem lucrar, sim, com a presença preta. Mas falar sobre isso... Tem muita gente que quando estiver assistindo [a essa entrevista] vai chamar de vitimismo, de mimimi, porque não quer fazer esse debate. É muito mais fácil você seguir na mesmice do que você parar, refletir e reavaliar que existe uma postura equivocada na sociedade.

O que você está falando para os donos e para os diretores de emissoras de televisão é: 'Meu amor, eu não estou te pedindo, não. É questão de business, é questão de lucro, seja inteligente! Coloque representatividade na sua emissora de televisão, que o seu faturamento vai aumentar". É isso?

E é bem simples, Leo! É exatamente isso. Porque olha só: quanto mais eu me vejo, mais eu consumo. Vou dar um exemplo básico: saio com o meu filho, como o meu filho já tem uma educação sobre representatividade, estimulo que ele adquira sempre produtos relacionados à imagem dele. Então, muitas vezes, a gente já deixou de consumir algumas coisas porque a gente não se via, sabe? E sei que esse movimento não é feito apenas por mim, existe um movimento social de pessoas que conseguiram compreender a importância de você se enxergar. A comunidade LGBT, a comunidade negra, a comunidade gorda. Existe um debate sobre gordofobia que a gente não faz. A gente continua ainda vendendo a imagem da mulher padrão, que veste 38, e essa não é a realidade da mulher brasileira. Porque existe alguém que está lucrando ao dizer para a gente que ser gordo é ruim. Neste período mesmo de isolamento, vira e mexe tem alguém fazendo piada sobre o resultado que isso vai ter no peso e ninguém consegue entender o quanto isso é doloroso para uma pessoa gorda, o quanto provoca danos você desqualificar a imagem de alguém.

Quero saber da sua experiência. Como é que foi a sua infância? Para ser essa pessoa maravilhosa que você é, quero entender, como é que foi a sua criação?

Meus pais fizeram a escolha de morar na periferia, mas dar educação de qualidade para mim e para a minha irmã. Então, sempre estudei em escola particular e o que acontecia? Muitas vezes eu era hostilizada porque era preta e pobre. Meu pai sempre teve carro, mas era um carro muito popular, um carro inferior. Então, as pessoas davam risada. As minhas coleguinhas iam para a Disney. Nunca fui para a Disney, até hoje. Nunca fui. Não tenho ideia de com é a cara do Mickey Mouse [risos]. Mas o que a gente tinha? A gente tinha educação de qualidade.

Tenho muito orgulho da minha mãe, porque ela trabalhava fora, mas, enquanto ela estava em casa fazendo a comida, estava prestando atenção no nosso desempenho nas atividades escolares. Então, o que a gente aprendeu lá em casa é que a gente tinha que ter formação e educação.

A educação é fundamental. Além da questão racial, o negro tem que estar presente na universidade. É fundamental para a construção de uma sociedade igualitária. Não é apenas o acesso por si só. A educação tem que ser igualitária, concorda?

Tanto que, se você observar, existe hoje em dia um sucateamento das escolas públicas. Por quê? Quem é que continua hoje em dia frequentando as escolas públicas? A população preta e pobre. Então, tem muita gente que faz crítica às cotas, sem nem entender como é que esse sistema funciona. Você não pode colocar em pé de igualdade um menino que passou a vida toda estudando em escola particular, que ganha um carro, que faz curso de Inglês, com o rapaz que está catando resíduo sólido, trabalhando dia e noite. Eles não podem disputar em igualdade, porque isso não é igual.

Essa meritocracia é uma lenda em uma sociedade que é racista, que é classista, que é homofóbica, que é machista. Você não pode tratar de forma igual quem o tempo todo é visto de forma diferente.

Eu quero saber do Aladê, seu filho. Como é que você espera que o mundo do Aladê seja, Tia Má?

É tão difícil falar sobre o meu filho, porque eu sempre me emociono. Mas tenho perdido um pouco das esperanças. Acho que meu filho ainda vai enfrentar algumas batalhas como eu enfrento. É muito duro você viver em uma sociedade em que as pessoas são tratadas de formas distintas e elas não têm o direito de dizer, porque são ridicularizadas. A nossa história é o tempo todo minimizada, e as pessoas querem apagar a nossa contribuição sócio-histórica. Mas creio que existe aí uma geração de pessoas que entenderam que a luta antirracista não é uma banalidade. Eu quero crer que Aladê terá outros desafios.

Ele vai ter algumas batalhas iguais as minhas, mas terá outros desafios. Ele é muito pequenininho, mas ele me falou uma vez que um dia seria presidente do Brasil. E eu nem sei se ele será o presidente, mas se um dia o meu filho puder andar livremente e não for confundido com um marginal, eu acho que ele já vai estar em uma sociedade muito melhor.

Você acha que em quantos anos o Brasil terá um presidente da República negro?

Eu queria te dizer que nas próximas eleições. Isso é o que eu sonho, o que eu espero, no que eu queria acreditar. Mas eu acho que a gente ainda não é um país tão avançado assim. Talvez daqui a quatro disputas eleitorais, uns 20 anos. Eu espero estar viva. A gente se encontra e eu digo: "Está vendo, Leo? Rolou o presidente negão, a presidenta negona".

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