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Quem é o líder do movimento negro do Grupo Globo?

Marcos Luca Valentim,  líder do movimento negro do Grupo Globo - Reprodução/SporTV
Marcos Luca Valentim, líder do movimento negro do Grupo Globo Imagem: Reprodução/SporTV

Colunista do UOL

09/05/2020 06h00

Dentro do Grupo Globo, funcionários negros se uniram para defender um sistema igualitário de contratação. O "grupo de afinidade", como o movimento é definido institucionalmente, chamado Diáspora, tem feito de sua existência uma luta diária há dois anos. Organizados, a liderança se reúne semanalmente para discutir projetos e ações. E mensalmente realizam um encontro para toda a empresa, incluindo aí a participação de pessoas brancas.

Com o apoio da Globo, o Diáspora mostra a liberdade que a empresa dá a tais movimentos e tem entre os líderes Marcos Luca Valentim, jornalista da Globosat, que conversou com a Coluna do Leo Dias, representando o movimento e expondo suas ideias para que sejam inspiração para as demais emissoras que ainda engatinham na questão da igualdade e representatividade.

Ele é jornalista do núcleo de esporte do grupo Globo desde 2016 e começou como editor de texto, mas atualmente também é coordenador de transmissões e integra o time de comentaristas do programa "Redação SporTV".

"Muita gente diz que é vitimismo, mas chega a ser covarde dizer isso quando se fala de um povo que passou mais de 300 anos escravizado e privado de direitos básicos. Se pararmos para pensar, pessoas negras que vivem hoje são apenas a quarta geração que nasceu livre. Como não levar isso em conta por tudo que vivemos?", questiona o profissional, que há dez anos começou escrevendo textos reflexivos no Facebook sobre racismo e cotidiano das pessoas negras.

Com um texto impecável e sempre bem embasado, Marcos respondeu aos questionamentos da Coluna do Leo Dias. Mas para isso precisamos esperar mais de duas semanas pelas respostas desta entrevista. A impressão que se tem é que todas as respostas precisaram passar pela mão de muitas pessoas. O que tornou algo burocrático e perdeu um pouco a naturalidade nas respostas. Mas ele é enfático sobre a necessidade do movimento:

"Nosso papel aqui é esse: servir de porta-voz das urgências e dos desejos das pessoas pretas que trabalham no grupo Globo. Levar aos diretores e gerentes responsáveis todas as demandas do coletivo. Um provérbio africano diz que enquanto os leões não puderem contar suas próprias versões, o caçador vai ser sempre o herói. É sobre isso".

COLUNA DO LEO DIAS: Quando e como surgiu o movimento Diáspora?

MARCOS LUCA VALENTIM: Nós somos um grupo étnico racial dentro do grupo Globo. Tudo começou de maneira bem embrionária, quando três funcionárias negras - Aída Barros, Consuelo Cruz e Renata Novaes (gosto de citar os nomes das mulheres pretas, pois existe um apagamento histórico delas) iniciaram um movimento de "recrutar" pessoas negras que trabalham na empresa para participar de um grupo de WhatsApp. O intuito era reunir essas pessoas num espaço virtual para criar essa conexão entre os nossos, porque a grande maioria não se conhecia, pois são várias áreas. E assim foi crescendo de forma orgânica. Uma pessoa negra via outra passando pelo corredor e abordava mesmo: "olha, a gente tem um grupo só de pessoas pretas, quer participar?". Foi por aí.

Ao mesmo tempo, o RH da Globosat criou um setor de diversidade (com foco em negros, mulheres, PCDs e LGBTQIA+) com uma gerente sendo uma mulher negra (Kellen Julio). A empresa queria expandir e dar uma chancela institucional ao grupo, trazendo pessoas negras e não negras para a discussão sobre o assunto internamente. Assim nasceu o Grupo Étnico Racial Diáspora, do qual sou um dos líderes, com muito orgulho.

Como você o define: o que ele representa e qual é a forma de atuação?

É um espaço onde conversamos, trocamos experiências, crescemos e construímos juntos e juntas estratégias para movimentar a estrutura institucional. Semanalmente, a liderança se reúne para discutir projetos e ações mensais, pois, mensalmente, realizamos um encontro para toda a empresa, com pessoas negras e brancas, e os temas são todos com o recorte racial. A ideia é ampliar o debate, levando conhecimento e despertando reflexão entre funcionárias e funcionários da empresa. Nós, da liderança, somos uma ponte para levar as urgências do grupo adiante. Nos reunimos com o RH para debater propostas e metas, e assim vai até chegar no alto escalão. Não mandamos em ninguém, até porque não existe hierarquia no Diáspora.

Qual é o processo para que uma ideia/discussão do Globo chegue até o alto escalão da emissora?

Ideias surgem de encontros e discussões. Daí, a liderança do grupo leva uma espécie de ata para a gerência do núcleo de diversidade e, a partir de então, a questão é direcionada às diretorias competentes. A ideia é que, com o crescimento do coletivo, nós mesmos da liderança participemos das reuniões também.

Movimento negro Diáspora realiza encontros mensais para toda empresa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Movimento negro Diáspora realiza encontros mensais para toda empresa
Imagem: Arquivo pessoal

Alguém da diretoria tem contato direto com vocês?

Sim, temos contato. Há, inclusive, diretores e diretoras que frequentam nossos encontros.

Se não fosse pelo surgimento do coletivo, acreditam que a Globo teria ficado menos inclusiva?

Certamente. O simples fato da empresa entender a necessidade da existência do Diáspora já mostra o quão inclusiva e diversa ela pretende ser.

Um grupo único discutindo questões que envolvem a 'diversidade' não pode criar ruídos? Negros, LGBTs e outras 'minorias' não entram em conflito de interesses neste grupo?

O Diáspora responde e se preocupa apenas com as questões étnico racial. E, claro, existem intersecções, e também lidamos com isso dentro do grupo. Mas para assuntos referentes a outras minorias, como LGBTQIA+, existem grupos específicos dentro da empresa.

A relação do ator negro ocupando papéis de relevância na dramaturgia - e não só como 'empregados, escravos' - é algo discutido dentro do grupo?

Sim, de maneira direta ou indireta, e inclusive com nossos painéis de debate. Fizemos um, em novembro do ano passado, na semana da consciência negra, falando da representação do negro no audiovisual. Foi bastante produtivo. Importante ressaltar que a empresa tem procurado detectar e entender esses pontos para evoluir no que tange à igualdade racial.

Marcos Luca Valentim é o líder do coletivo Diáspora - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcos Luca Valentim é o líder do coletivo Diáspora
Imagem: Arquivo pessoal

?O que vocês planejam conquistar a médio e a longo prazo?

Espaço e oportunidade. A curto e médio prazos, primeiro, vamos expandir. Chegar a cada polo da Globo, a cada braço, e nos instalar em todas as áreas. É necessário, pois já recebemos mensagens de funcionários de outros setores e de outras praças que querem fazer parte do Diáspora. E é super legítimo isso, porque o grupo não é nosso: é de pessoas pretas que trabalham na empresa. Daí, vamos pensar em mais projetos e pautas globais, para abraçar a empresa como um todo, e não só alguns canais e/ou áreas. É necessário levar nosso movimento adiante, amplificar o debate de diversidade sempre.

A longo prazo, é sobre o sentido real de representatividade, porque entendemos que representatividade não é ter uma única pessoa preta em um lugar de destaque onde todas as outras que ali estão são brancas. Não vivemos num país nórdico onde a população negra é próxima a zero. Vivemos num país onde somos maioria, então, no nosso entendimento, temos que estar representados em todos os espaços. Representatividade tem que passar por proporcionalidade. Caso contrário, fomenta uma falsa meritocracia, pois quer se fazer da exceção, a regra.

Como você imagina a redação da TV Globo em 4 anos? Diferente da que existe hoje?

Prefiro pensar na empresa como um todo e não só na redação. "Um passo à frente, e você não está mais no mesmo lugar". Essa é uma frase do Chico Science, e vou aproveitar para emendar uma citação da grande Jurema Werneck: "nossos passos vêm de longe". O que quero dizer é que sabemos onde queremos chegar e sabemos de onde viemos. Daqui a quatro anos, as coisas vão estar bem diferentes. E isso não é uma esperança: é uma certeza. Para chegar ao que julgamos como ideal vai demandar bem mais tempo, isso é um fato. Mas o importante é que começamos, estamos voando. E foguete não dá ré.

Para finalizar, podemos servir de modelo para empresas que ainda são acometidas pelo racismo institucional, o que impede a contratação e promoção de pessoas negras. São muitas barreiras a serem destruídas, e por isso consideramos tão importante o que estamos fazendo aqui.

Movimento negro Diáspora organiza encontros mensais para todos os funcionários do Grupo Globo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Movimento negro Diáspora organiza encontros mensais para todos os funcionários do Grupo Globo
Imagem: Arquivo pessoal

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