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Fagundes realça lado patético do poder e lamenta que público rejeite o novo

Fagundes: "O Afrânio usa aquela peruca, tem aquele visual quase patético, porque é essa a imagem que a gente queria passar" - Caiuá Franco/TV Globo
Fagundes: "O Afrânio usa aquela peruca, tem aquele visual quase patético, porque é essa a imagem que a gente queria passar" Imagem: Caiuá Franco/TV Globo

Vanessa Barros

Do UOL, em São Paulo

30/08/2016 07h30

Com 'Velho Chico' caminhando para seu final, tornam-se evidentes os efeitos das escolhas feitas por Afrânio de Sá Ribeiro ao longo dos 50 anos retratados pela novela global das 21h. Desde que o jovem de espírito livre -- vivido então por Rodrigo Santoro -- optou por seguir os passos do pai, sua sensibilidade deu lugar ao egoísmo do coronel Saruê -- defendido com firmeza por Antônio Fagundes. E foi essa firmeza que permitiu ao ator bancar até hoje o personagem da forma idealizada por direção e equipe: controverso, vaidoso, quase patético -- e de peruca. "As pessoas rejeitaram o Afrânio e a peruca porque acharam feio. Seria bom reforçar esse tipo de Afrânio para as pessoas perceberem que é justamente uma representação do que temos no nosso país. É uma forma patética de mostrar o poder no Brasil", analisa o veterano.

Fagundes foi muito criticado por espectadores que reclamaram que o seu coronel em nada se assemelhava ao criado por Santoro. Na semana que a trama entrou na segunda fase, no entanto, ele teve a oportunidade de assistir em um domingo pela TV a várias versões de seu personagem enfileiradas ao pé do microfone no Congresso Nacional. "No dia 17 de abril [data da aprovação do processo de Impeachment da presidente Dilma Rousseff], vimos na votação da Câmara dos Deputados uma fila interminável de Afrânios, quase com a mesma roupa, com o mesmo estilo, com o mesmo cabelo acaju e com os mesmos argumentos." Na análise do ator, o perfil pitoresco dos parlamentares evidenciou o valor da construção pomposa e cômica do coronel de "Velho Chico".

02.abr.2016 - Afrânio (Antônio Fagundes) faz discurso em cena de "Velho Chico" - Caiuá Franco/TV Globo - Caiuá Franco/TV Globo
"Esse personagem é isso. É o cara que superfatura obras", diz o ator sobre o Saruê
Imagem: Caiuá Franco/TV Globo
"Vimos aquela fila de Saruês no Congresso Nacional. Aqueles eram caricatos e exagerados. E quando você começa a ouvir os depoimentos, os argumentos, você vê como aquela caricatura está jogando poeira nos seus olhos. São nossos representantes. Assistir a uma novela é muito mais fácil do que acompanhar a vida política brasileira. Esse personagem é isso. É o cara que superfatura obras", compara Fagundes, exemplificando com uma passagem de seu Saruê a reflexão proposta pela novela. "Em uma cena, ele diz: 'Eu ia lá, usava o meu prestígio e fazia ponte, barragem'. Então a filha pergunta se aquele dinheiro não iria para a educação se o pai não fizesse isso. E ele questiona: Iria?' É esse cara que está lá mandando, o cara que se gaba de fazer a ponte que leva nada a lugar nenhum. Talvez, sem ele, as pessoas continuariam atravessando de barquinho, mas com saúde, com formação."

Para Antônio Fagundes, estão no visual do personagem -- e não apenas em suas falas e ações -- algumas informações valiosas para quem deseja aproveitar a trama. "O Afrânio usa aquela peruca, tem aquele visual quase patético, é vaidoso, porque é essa a imagem que a gente queria passar. E muitos não perceberam a peruca como algo que a gente queria passar, mas como algo feio, que não agradou. O visual é daquela forma para o público parar e perguntar por que este personagem está saindo desse jeito. Tirar a peruca do Afrânio é como tirar a corcunda no Quasímodo ou o nariz do Cyrano", ilustra o ator, citando os clássicos "O Corcunda de Notre-Dame", de Victor Hugo, e "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand, nos quais características físicas de seus heróis são fundamentais para o entendimento da história.

07.jan.2016 - Rodrigo Santoro na pele do coronel Afrânio na 1ª fase de "Velho Chico" - Caiuá Franco/TV Globo - Caiuá Franco/TV Globo
Rodrigo Santoro na pele de Afrânio de Sá Ribeiro em cena de "Velho Chico"
Imagem: Caiuá Franco/TV Globo
Expondo 50 anos de história de seus personagens, a trama de Benedito Ruy Barbosa mostra ao público cenas em que mocinhos e vilões encaram os efeitos de suas escolhas do passado. Com o Saruê, segundo Fagundes, os resultados desse período vão ficar ainda mais claros até o final da novela. "Hoje a história mostra dezenas de cenas emblemáticas em que ele coloca esse passado. Cenas doloridas, até, para ele. É um Dorian Gray ao contrário, um cara que se olha no espelho e não se reconhece, porque o cara que ele queria ver era mais bonito."

A palavra que move o mundo

Mesmo com opiniões negativas sobre a virada de "Velho Chico" para a segunda fase, Antônio Fagundes diz que fica satisfeito de a produção ter se mantido fiel à ideia original, sem mudar o rumo da história para atender à "pressa" da audiência: "A gente não deixou de contar a história que a gente queria, que é essa que foi pro ar." Essa pressa do público em ver suas expectativas atendidas na TV, segundo o ator, é explicada por uma expressão criada há cerca de dez anos nos Estados Unidos, o 'egocasting'. Trata-se do poder que o consumidor tem de ser exposto apenas a produtos de seu interesse, evitando assuntos que o desagradem. Em geral, o conceito é acompanhado por um alerta: quanto mais podemos selecionar o que vemos e ouvimos, menos preparados estamos para sermos surpreendidos.

"As pessoas não percebem o mundo porque querem sempre as mesmas coisas. Você só elege as coisas que te fazem bem, as músicas que você gosta, as cores que você gosta, os ritmos que te agradam, a comidinha é sempre a mesma. Você se cerca tanto de coisas confortáveis que você não percebe o que acontece à sua volta. Perde-se assim a oportunidade de arriscar, de perceber o erro. Você fica tão protegido que as coisas não te atingem mais, e as coisas ruins vão acontecer sem você perceber. Depois é tarde para voltar atrás", critica Fagundes, lamentando que parte do público não se disponha mais a conhecer coisas novas.

O veterano faz uma análise tanto da audiência quanto do artista, e chama atenção dos dois lados para a importância de se pular fora da própria zona de conforto: "É a mesma história sendo contada do mesmo jeito sempre", define. "As pessoas têm receio de sair da zona de conforto. Do lado do ator eu até entendo, mas a plateia deveria estimular a saída. Eu, como espectador, gosto de ser surpreendido. Eu quero que a história me surpreenda e me leve a outros lugares."

Antônio Fagundes no papel de Pedro na primeira versão da série Carga Pesada, de 1979 - Reprodução/TVGlobo - Reprodução/TVGlobo
Fora da zona de conforto: o caminhoneiro Pedro, da versão de 1979 de "Carga Pesada"
Imagem: Reprodução/TVGlobo
Em uma retrospectiva de seus papéis na TV, Fagundes lembra que fazer sucesso nem sempre é sinônimo qualidade no trabalho -- e que ele mesmo já caiu na armadilha do mínimo esforço. "No Brasil, o ator perdeu o prazer de construir personagem. Ao longo da minha carreira, eu fiz muitos personagens em que não saí da zona de conforto. Eles fizeram sucesso, foram elogiados, foram bem-recebidos pelo público, mas faltava uma coisinha e eu sabia disso. Muitas vezes eu percebi antes e fui buscar o que o personagem tinha que representar. Foi assim [saindo da zona de conforto] com 'Nina' (1977), com 'Carga Pesada' (1979 e 2003), com Caio o Szimanski (de 'Rainha da Sucata', 1990), 'O Rei do Gado' (1995), 'Gabriela' (2012), 'Meu Pedacinho do Chão' (2014). E agora estou saindo com o Afrânio."

Para o ator, a telenovela brasileira tem a missão do entretenimento, mas também é capaz de ampliar o olhar do público, desde que haja disposição vivenciar o novo. "Se a gente teve algum espectador atento, ele percebeu muita coisa na novela, de ecologia, de meio ambiente... Sempre gostei da telenovela brasileira, além de entreter -- o que é necessário -- ela toca em problemas graves da nossa realidade. Já falou de homofobia, racismo, política, ética, corrupção, reforma agrária. As novelas estão sempre tocando em problemas urgentes dentro de uma fórmula de entretenimento."

Fagundes cita uma fala da peça "Vermelho" -- com a qual está em cartaz em São Paulo até o início de dezembro ao lado do filho Bruno -- para mostrar a relação entre a novela e seu público: "Uma obra de arte vive ou morre nos olhos de um observador empático. Se ele é empático, a obra vive. Se ele não é, a obra não existe." Na torcida para que o público aproveite o máximo de "Velho Chico", ele lembra que esta química só acontece se houver disposição dos dois lados. "Tem uma palavrinha que move o mundo. Chama: interesse. Se você não se interessar, nada vai te atingir. Qualquer coisa no mundo passa pelos olhos de um observador sensível."