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Mães revivem desaparecimento de filhos ao ver novela: "Luto que não acaba"

Mães da Sé se reúnem nas escadarias da Catedral da Sé, na cidade de São Paulo, há 24 anos - Reprodução/Facebook
Mães da Sé se reúnem nas escadarias da Catedral da Sé, na cidade de São Paulo, há 24 anos Imagem: Reprodução/Facebook

Felipe Pinheiro

Do UOL, em São Paulo

27/11/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Novela Amor de Mãe retrata o drama do desaparecimento com a personagem Lurdes, interpretada por Regina Casé
  • Fundadora da Mães da Sé, Ivanise Esperidião tem uma filha desaparecida há quase 24 anos
  • Ela criou a ONG após participar da novela Explode Coração, em 1996
  • Ivanise afirma que a novela tem um papel social e que ajuda a levar conscientização sobre o desaparecimento de pessoas no Brasil

Lurdes é uma nordestina que se muda para o Rio de Janeiro em busca do filho Domênico, que foi vendido pelo pai. Essa é uma das histórias de Amor de Mãe, que estreou nesta semana na Globo, mas o drama da personagem, assim como outras tramas da novela, tem forte conexão com a realidade de quem sofre com desaparecimento de uma pessoa querida.

Fundadora do Movimento Mães da Sé, Ivanise Esperidião da Silva perdeu a filha há 24 anos, quase o mesmo tempo do desaparecimento do filho da personagem de Regina Casé na novela escrita por Manuela Dias. Emocionada, Ivanise se lembra em detalhes daquela noite chuvosa de 23 de dezembro de 1995, a última vez que sua filha foi vista por pessoas próximas.

Regina Casé interpreta Lurdes: personagem sofre com o desaparecimento do filho na novela Amor de Mãe - João Cotta/Globo - João Cotta/Globo
Regina Casé interpreta Lurdes: personagem sofre com o desaparecimento do filho na novela Amor de Mãe
Imagem: João Cotta/Globo
Fabiana, então com 13 anos, saiu de casa por volta das 20h e, acompanhada de uma amiga, visitou uma colega de escola que fazia aniversário. As duas voltaram juntas, mas Fabiana nunca mais reapareceu.

"Eu não estava em casa quando ela saiu. Tinha ido ao cabeleireiro. Quando cheguei e percebi que ela não estava, perguntei à minha outra filha se ela sabia da Fabiana. Logo em seguida, começou uma chuva muito forte. Deduzi que ela e a amiga estariam esperando passar para voltar. Quando a chuva parou, fui até a casa da menina que havia saído com ela. Ela disse: 'Tia, a Fabiana já foi embora faz tempo'. Na hora, você não pensa no pior", lembra Ivanise.

Fabiana foi vista pela última vez por essa amiga, quando as duas se separaram para que cada uma seguisse o seu trajeto para casa. A mãe refez o percurso da filha, organizou um pequeno mutirão na vizinhança e, ainda naquela madrugada, tentou pedir socorro à polícia.

"Quando já não tinha mais onde procurá-la ali, na proximidade, resolvi ir até a delegacia. Para a minha surpresa, o delegado disse que era coisa de adolescente e que até o amanhecer ela voltaria para casa. Estou esperando até hoje", diz ela, ao ser informada de que precisava aguardar 24 horas para registrar o boletim de ocorrência.

Se eu tivesse enterrado a minha filha, eu já teria me acostumado com a ideia de nunca mais vê-la. A diferença é entre viver um luto real e um luto que não acaba. Há quase 24 anos minha vida virou uma interrogação. Eu me pergunto todos os dias: como está a minha filha com 37 anos? Se ela está viva, por que nunca foi vista? Se está morta, cadê o corpo? É um tormento que eu não desejo a ninguém. Não dá para imaginar o que é não comemorar 23 anos de dias das mães, 23 aniversários, 23 dias de Natal. Viver a dor do desaparecimento é viver um luto inacabado. É uma ferida que não cicatriza. É uma dor que não tem remédio

Como estaria a filha da fundadora da Mães da Sé hoje em dia após desaparecimento - Reprodução - Reprodução
Como estaria a filha da fundadora da Mães da Sé hoje em dia após desaparecimento
Imagem: Reprodução

Novela Explode Coração e as Mães da Sé

Ivanise diz que lidar com o desaparecimento é viver uma luta solitária, o que, segundo ela, acaba dando a sensação de uma dor ainda mais intensa. Por três meses, ela buscou sozinha pela filha, até que, em 1996, isso mudou. Ivanise encontrou amparo em um grupo de mães convidadas para participar da novela Explode Coração, da autora Gloria Perez.

A trama tratava sobre o desaparecimento de crianças e contava com depoimentos de pessoas reais, que falavam sobre as suas histórias ao fim dos capítulos. Participar da novela encheu a mãe de Fabiana da esperança.

"Após a aparição na novela, fui procurada por jornalistas, e o telefone não parava de tocar, mas tudo o que eu recebi foram alarmes falsos. Mesmo daquelas pessoas que falaram 'acho que vi uma menina parecida' eu fui atrás. E comecei a receber ligações de pessoas [com problemas semelhantes] que me perguntavam onde poderiam me encontrar. Eu via a praça da Sé como um palco de grandes atos e reivindicações da sociedade civil e lá eu marquei. Mais de cem pessoas foram a esse encontro. Foi um choque de realidade, porque eu não tinha noção da quantidade de pessoas desaparecidas. E todos os veículos de comunicação também estavam presentes. Foi o começo de uma luta", lembra ela.

Cena da novela Explode Coração (1995-1996), de Gloria Perez, que tratou do tema do desaparecimento - Divulgação/Globo - Divulgação/Globo
Cena da novela Explode Coração (1995-1996), de Gloria Perez, que tratou do tema do desaparecimento
Imagem: Divulgação/Globo

"Percebi que aquelas mães, apesar de passarem pela mesma situação, tinham uma fragilidade na falta de reconhecimento de seus direitos. Ali começou um movimento denominado pela imprensa como Mães da Sé. Saímos do anonimato, e todas as emissoras de televisão queriam falar sobre o assunto", afirma.

Apesar da expectativa, que era ainda maior após expor a sua história na televisão, Ivanise não localizou a filha. As Mães da Sé se reúnem a cada 15 dias nas escadarias da Catedral da Sé, no centro histórico de São Paulo. Elas têm alguns objetivos e um deles é chamar atenção da sociedade e das autoridades para um problema que, nas palavras de Ivanise, é invisível. Em 24 anos, a ONG encontrou mais de 5.000 desaparecidos e mais de 10 mil casos já foram cadastrados.

Ela, que vivenciou a experiência de ver a força da repercussão de uma novela nesse tipo de caso, emociona-se a falar de Amor de Mãe.

Essa novela vai retratar a nossa realidade. Eu me vejo na personagem da Regina Casé. É muito difícil. As novelas têm um papel social, denunciando e retratando diversos problemas. E não só em relação ao desaparecimento, mas uma diversidade de problemas, como racismo, exploração sexual, miséria, feminicídio. Para o Estado, os nossos filhos são apenas uma uma estatística e, para a sociedade, é mais cômodo nos olhar como coitadas do que ser a nossa principal aliada nessa causa. A novela também provoca essa conscientização

"Encontrei meu filho depois de quatro anos"

Ivanise e outras tantas milhares de mães têm esperança de encontrar os seus filhos desaparecidos. A auxiliar de enfermagem Maria Aparecida, 74 anos, buscou o filho por quase quatro anos e, sem perder a fé, achou. Silvio Cesar Corraini tinha 44 anos quando falou com a mãe pela última vez antes de seu desaparecimento. Ele morava em Itanhaém, litoral sul de São Paulo, e os dois tinham acabado de se encontrar.

Maria Aparecida buscou o filho por quase quatro anos e conseguiu encontrá-lo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Aparecida buscou o filho por quase quatro anos e conseguiu encontrá-lo
Imagem: Arquivo pessoal
"Ele estava fazendo umas prateleiras embaixo da escada na minha casa, mas pediu para irmos embora na frente, porque ele precisava resolver um outro problema. Depois, me ligou para saber se estava tudo bem e disse: 'Nunca se esqueça, você é muito importante para mim. Eu te amo muito'. O celular ficou sem sinal e não falei mais com ele", afirma.

Maria Aparecida e o marido, o padrasto de Silvio, procuraram por ele em todos os cantos, como hospitais, na Cracolândia e mesmo em outras cidades do interior de São Paulo. Ela se emociona quando lembra que recebeu uma ligação para fazer o reconhecimento de um corpo no IML (Instituto Médico Legal). Existia a suspeita de que pudesse ser seu filho.

A gente não vive. A gente vegeta. Eu esqueci que tinha outros filhos, netos, bisnetos. Fui fazer o reconhecimento no IML e o meu marido surtou, mas Graças a Deus não era meu filho. A gente entra em desespero, mas, ao mesmo tempo, há um certo alívio, como uma brisa que sopra, de que ele tenha sido encontrado vivo ou morto. Não dá para descrever como é a luta de quem tem alguém desaparecido.

A história de Maria Aparecida começou a mudar com o apoio das Mães da Sé. Ela encontrou Ivanise nas escadarias da praça e desabafou sobre o seu sofrimento. Foi por meio de uma parceria da ONG com uma frota de caminhões que Silvio foi localizado. Ele tinha problema com bebida alcoólica e, após um surto, foi parar no Espírito Santo. "Ele sofria de depressão, teve uma briga com a mulher e surtou. Ele não entrou em contato comigo porque ficou com vergonha de voltar e com medo de que tivesse acontecido alguma coisa comigo", diz.

Ela lembra que, quando entraram em contato com ela para falar do filho, achou que fosse trote. "A pessoa do outro lado da linha falou, 'Dona Maria, eu sei que já passou o Dia das Mães, mas qual é o presente a senhora mais gostaria de ganhar? Eu falei que gostaria de receber o abraço de um filho meu, mas não falei o nome. Ele falou: 'Você vai receber esse abraço de presente. É do Silvio que a senhora está falando?' A alegria foi tanta que eu chorava ajoelhada e agradecia a Deus."

O homem do outro lado da linha havia identificado Silvio ao ver o anúncio do desaparecimento em um caminhão. Era ele quem estava ajudando o filho de Maria Aparecida a se tratar do alcoolismo.

"Meu marido não chegou a encontrá-lo, pois morreu antes. Uma semana antes de ele morrer, falou que o que mais sentia era não ter encontrado o meu filho para cuidar de mim. Ele estava muito preocupado comigo. Meu filho viveu comigo por três anos e depois morreu. Foram anos de felicidade total, embora ele estivesse doente. Se eu não tivesse encontrado naquela época, eu nunca mais o veria", diz ela.