'O filme da minha vida devia chamar Survivor', diz João Carlos Martins
O maestro João Carlos Martins completou hoje seus 80 anos mais hiperativo do que nunca. Ele tem passado cerca de sete horas na frente do piano, mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, estudando partituras para voltar a tocar com os 10 dedos no teclado — o que não acontecia há 22 anos.
Em uma entrevista para a revista "QG", ele relembrou sua trajetória na música e o sofrimento com a perda dos movimentos dos dedos, por diversos problemas de saúde. Quando já parecia conformado com sua aposentadoria como pianista, seu destino foi alterado no ano passado.
"Tudo mudou em julho do ano passado, quando fiz o encerramento do Festival de Campos de Jordão. No dia anterior regi à noite em Sumaré. Foi quando conheci um designer de produto, o Ubiratan Bizarro Costa, que me mostrou uma luva que tinha criado para mim. Na hora percebi que a ideia era boa, mas que talvez ela não me ajudasse. Porém, ele tinha um interesse pelas minhas mãos. Uma semana depois o chamei para almoçar aqui em casa, quando expliquei exatamente o meu problema. E ele conseguiu desenhar uma luva inspirada na Fórmula 1, naquele movimento dos pneus quando o carro abaixa e sobe", disse.
Na sequência, explicou a invenção: "É uma luva extensora, mas que foi chamada de biônica. Com ela, toquei um noturno de Chopin e postei no meu Instagram. Três dias depois, 187 jornais no mundo publicaram que estava tocando com os 10 dedos de novo", relembrou.
"Aí pensei, em vez de ficar o dia inteiro decorando partituras, a partir dos 80 eu vou reger com a partitura na frente, mas com a mesma emoção. E assim passo o meu dia estudando piano. Para reger sempre foi tudo de cor - mais de 150 partituras decoradas. Moral da história: aquela velocidade que tinha - que chegava a fazer 21 notas por segundo - isso vai demorar 300 anos para descobrirem algum aparelho. Porém, a parte de acordes e músicas lentas, concertos não tão rápidos, consigo tocar com as luvas. Agora estou preparando um repertório usando todos os dedos", comemorou.
A pandemia, no entanto, tem deixado o maestro comovido — mas o trabalho não parou. "Primeiro veio um sentimento de dor pela morte de tantas pessoas no mundo e, ao mesmo tempo, a dor daqueles que perderam entes queridos e nem puderam se despedir. Mesmo com este sentimento, consegui fazer na pandemia os meus dias ficarem mais curtos estudando", frisou.
"É aquela sensação de uma pessoa que sabe que não vai alcançar suas 21 notas por segundo, mas que pode continuar tentando transmitir emoção para o público - a missão de um artista. Esta tem sido minha vida. Agora os vizinhos pedem para eu abrir a janela. Mas resolvi estudar em um piano mudo porque seu erro uma nota não quero que percebam", destacou.
João Carlos lembrou com emoção da primeira música que tocou quando colocou o último protótipo da "luva biônica". "Foi uma partitura de Mozart. E ali vi que o som era bonito com todos os dedos. Agora, ao mesmo tempo, tive uma dificuldade enorme porque, durante 22 anos, o cérebro acostumou que só podia usar primeiro três, quatro dedos, e depois só dois", comentou.
"Readaptar o cérebro com 80 anos não é brincadeira. É todo um aprendizado. Tive quatro tipos de problemas, né? Desde a juventude, com distonia focal, depois lesão do nervo ulnar, LER (lesão por esforço repetitivo) e ainda lesão cerebral. Contando estes quatro problemas, o nome do filme da minha vida, em vez de Ser "João, o Maestro", devia ser "Survivor". O Sobrevivente, entende?", brincou.
Questionado o que as pessoas nunca devem esperar de João Carlos Martins, o maestro foi direto: "A palavra 'desistir'. Isso nunca esperem de mim. E a palavra que sempre podem esperar é 'esperança'", finalizou.
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