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Repórter demitido do Grupo Globo aponta questão racial no caso

Adalberto Neto - Reprodução/Instagram
Adalberto Neto Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

05/12/2019 13h11

Resumo da notícia

  • O repórter Adalberto Neto diz que não foi informado o real motivo de sua demissão do jornal O Globo.
  • Oficialmente, ele foi informado que a demissão ocorreu pelo "conjunto da obra", que colegas disseram ser a repercussão de vídeos publicados por ele.
  • Nas imagens, o editor de esportes e outros dois profissionais aparecem comemorando, na redação, a vitória do Flamengo na Libertadores.
  • Adalberto, que é negro, aponta a questão racial como possível motivador da demissão, caso ele seja, de fato, o único dispensado pelo jornal.

A grande repercussão gerada pela demissão do repórter Adalberto Neto do Grupo Globo, após imagens gravadas por ele mostrando parte da equipe de plantão comemorando a conquista da Libertadores pelo Flamengo viralizarem, fez com que o profissional quebrasse o silêncio e se pronunciasse.

Em carta enviada à Coluna Leo Dias, o repórter disse que não sabe, de fato, se sua demissão teve algo a ver com os vídeos publicados. "Realmente, não foi informado o motivo da minha demissão. Meu editor apenas disse que foi um pedido da direção pelo 'conjunto da obra', mas ele não soube responder - ou não podia - me informar a respeito.", conta. Entretanto, ao se despedir de seus colegas de trabalho, quase todos, apontaram os vídeos publicados em seus stories sobre a comemoração da vitória rubro-negra como a motivação da dispensa.

Segundo Adalberto, se a 'obra' a que seu superior se referiu foi mesmo o vídeo, é muito curioso que só ele tenha sido desligado da empresa, sem qualquer advertência prévia, e aponta a questão racial - o repórter é negro - como razão para demissão. "Para quem tem o mínimo de letramento racial, é impossível não racializar essa minha demissão.", diz ele, que apesar da declaração de racismo, não culpa a empresa, nem a direção, nem seu editor. "A culpa não é nossa. Vem lá de trás. Da colonização.".

O repórter diz que é preciso ter uma visão mais ampla para entender a questão. "Um país, uma empresa [...] são feitos por pessoas. E se as pessoas não conseguem ter um olhar amplo sobre tudo, suas ações, de modo geral, nunca vão ser eficientes e, em alguns casos, bastante injustas, carregadas de conceitos e preconceitos, que nem pensamos na hora, porque fazem parte da estrutura sobre a qual a nossa sociedade se formou. É automático também."

Adalberto reforça que o motivo do seu pronunciamento não tem o menor intuito de difamar o jornal ou alguém. "Em todas as lutas dessa vida é importante que estejamos juntos. O inimigo nunca é o outro, mas certas formas de pensar, que levam a certas maneiras de agir.", escreveu ele, que, apesar de se dizer grato ao Grupo Globo, apontado como "um diferencial na carreira de qualquer jornalista", aconselha a empresa a aumentar o número de profissionais negros nos cargos de liderança. "Entre os editores executivos, só há uma mulher preta, e que é incrível, diga-se de passagem. A diversidade não é bacana apenas no campo da discussão nem para mostrar que estamos antenados com o momento, em que a questão se tornou mais que urgente. A diversidade é a vida. E é preciso saber viver. A gente já canta isso! É só aplicar."

Procurada para comentar as declarações do ex-funcionário, a assessoria de imprensa do jornal O Globo, a exemplo de quando procurada para saber se a demissão tinha relação com o vídeo gravado e viralizado, informou que não comentaria o desligamento do repórter.

Leia na íntegra a carta escrita por Adalberto Neto e enviada para a Coluna Leo Dias:

"Já que o assunto está tomando uma dimensão assustadora, decidi me pronunciar. A mim, realmente, não foi informado o motivo da minha demissão. Meu editor apenas disse que foi um pedido da direção pelo "conjunto da obra". Cheguei a perguntar de que "obra" se referia, mas ele não soube responder (ou não podia). Enfim, durante os abraços de despedida nos colegas, quase todos me afirmavam que a "obra" consistia em alguns Stories durante a vitória do Flamengo sobre o River Plate por 2 a 1 na final da Libertadores.

Só para contextualizar, já que vi em alguns perfis uma galera me chamando de X9, desde a hora que eu saí de casa para trabalhar, eu comecei a gravar, dizendo que, apesar de ser Vasco, naquele dia eu era Flamengo, porque o time representava o Brasil no campeonato internacional. Sei que pode parecer estranho, vindo de um vascaíno, mas eu sinceramente encarei aquilo como uma final de Copa do Mundo e mostrei, em inúmeros momentos do meu dia a expectativa pelo jogo.

Aqui, no Brasil, se pararmos para pensar, não temos muitos motivos para comemorações. Alta do dólar, da carne, do gás, do tempo de trabalho... Deixa eu celebrar o Flamengo e idolatrar o Gabigol também, pô!

Na redação, durante a partida, não foi diferente. Aliás, como lá era o lugar em que passava a maior parte do meu dia, sempre foi cenário dos meus vídeos diários. Eram muitos. E nunca reclamaram comigo. Pelo contrário, um monte de gente de lá me segue e me acompanha frequentemente. Mostrei nos meus Stories meu otimismo, pessimismo, apreensão, raiva, felicidade, euforia e otimismo de novo durante o jogo. Acho que todo mundo que torcia pelo Flamengo passou por isso. Inclusive o Márvio dos Anjos, editor de Esportes, que é um cara que eu adoro e, só a título de curiosidade, faz parte de um grupo de WhatsApp comigo, o Troncal de Carnaval, em que sugerimos as boas do carnaval durante o período da folia e, nos outros meses do ano, enviamos memes, figurinhas e falamos de assuntos que vão de A a Z. Fecha parênteses.

Depois do gol da virada do Flamengo sobre o River, fiz vários vídeos da minha comemoração com os repórteres que estavam de plantão na minha baia. E esse era o propósito. Curtição despretensiosa. De repente, três pessoas começam a correr pela redação na direção de onde eu estava. Foi automático. Mostrei o trio sem a menor maldade. Aquela cena me divertiu. O Flamengo tinha sido campeão. Eu estava feliz. Ponto.

No meio da efusividade, não pensei que o ato "tirar a camisa" poderia soar tão mal para um editor. Juro. Mas soou. Copiaram o meu vídeo e, dias depois, por um coleguinha, descobri que a cena gerou milhares de comentários, curtidas e compartilhamentos nas redes sociais. Confesso que me assustei e fiquei preocupado, mas como a publicação no Twitter que me enviaram era do dia 27 de novembro, e eu soube em 2 de dezembro, achei que a poeira já tinha baixado. Mas pelo visto não.

E se a "obra" foi mesmo o vídeo que fiz, acho muito curioso só eu ser desligado da empresa, sem nem tomar uma advertência prévia. Logo de após o mês da Consciência Negra e de todo o debate que se levanta nesse período, o meu mês seguinte já começa assim. Para quem tem o mínimo de letramento racial, é impossível não racializar essa minha demissão. E não vim aqui culpar a empresa, nem a direção, nem o meu editor.

A culpa não é nossa. Vem lá de trás. Da colonização. Só para se ter uma ideia, quando falamos que o Brasil já começou errado, quando os portugueses invadiram a nossa terra, já deslegitimamos a existência do povo brasileiro que aqui residia, cuidava da nossa natureza, era livre e feliz: os indígenas. Então, não começou errado. Começou certo. A história não pode ser contada a partir do momento em que homens brancos passam a fazer parte do contexto. Ela é maior e mais ampla.

E é esse olhar que eu quero que as pessoas tenham. Porque um país, uma empresa, um hospital, uma escola, um orfanato, um asilo, um mercado, uma redação, uma Polícia Militar e Brasília são feitos por pessoas. E se as pessoas não conseguem ter um olhar amplo sobre tudo, suas ações de modo geral nunca vão ser eficientes e, em alguns casos, bastante injustas, carregadas de conceitos e preconceitos, que nem pensamos na hora, porque fazem parte da estrutura sobre a qual a nossa sociedade se formou. É automático também.

Sou muito grato à empresa. Trabalhar no jornal O Globo, realmente, é um diferencial na carreira de qualquer jornalista. Dá um selo de qualidade, sabe? Fui muito feliz ali nos meus quase sete anos, fiz inúmeros amigos, não saio triste.

E se eu puder dar um conselho: aumentem o número de profissionais pretos nos cargos de liderança. Entre os editores executivos, só há uma mulher preta, e que é incrível, diga-se de passagem. A diversidade não é bacana apenas no campo da discussão nem para mostrar que estamos antenados com o momento, em que a questão se tornou mais que urgente. A diversidade é a vida. E é preciso saber viver. A gente já canta isso! É só aplicar.

Se precisarem de mim para uma conversa pessoalmente, estou por aqui. Tenho muito carinho por todos da empresa e isso não vai mudar.

E só para reforçar: o motivo desse meu pronunciamento não tem o menor intuito de difamar o jornal ou alguém. Em todas as lutas dessa vida, é importante que estejamos juntos. O inimigo nunca é o outro, mas certas formas de pensar, que levam a certas maneiras de agir.

Juntos podemos ser mais fortes!"

*Com colaboração de Lucas Pasin

Blog do Leo Dias