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"Segunda Chamada não tem pretensão de resolver a educação", dizem autoras

 Silvio Guindane, Hermila Guedes, Débora Bloch, Paulo Gorgulho e Thalita Carauta na série Segunda Chamada - Mauricio Fidalgo/Globo
Silvio Guindane, Hermila Guedes, Débora Bloch, Paulo Gorgulho e Thalita Carauta na série Segunda Chamada Imagem: Mauricio Fidalgo/Globo

Felipe Pinheiro

Do UOL, em São Paulo

19/11/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Segunda Chamada chama a atenção dos espectadores pela forma realista como aborda o cotidiano de uma escola para adultos na periferia de São Paulo
  • As autoras Carla Faour e Julia Spadaccini dizem que a recepção do público era "uma incógnita" antes da série ir ao ar
  • "Professores estão se sentindo representados e vemos que o público estava preparado para essa discussão", afirma Carla Faour
  • Elas ainda afirmam que não têm a pretensão de "resolver a educação" no país e enaltem a combinação de entretenimento com relevância social

Uma aluna rouba o leite da cantina para dar ao bebê de colo. Um aluno assalta os colegas de sala para dar de comer ao filho. Uma mãe solteira morre após tomar um abortivo, por não ter condições de criar o quarto filho. Estes são alguns dos dramas de Segunda Chamada, série da Globo que vem chamando a atenção do público por abordar o cotidiano de uma escola que trabalha com EJA (Educação para Jovens e Adultos) na periferia de São Paulo.

Após um mês de exibição da série na TV, as autoras Carla Faour e Julia Spadaccini falam em entrevista ao UOL sobre as suas primeiras impressões do retorno que receberam de telespectadores, especialmente professores e alunos da rede pública de ensino.

As autoras de Segunda Chamada, Carla Faour e Julia Spadaccini - Globo/Victor Pollak - Globo/Victor Pollak
As autoras de Segunda Chamada, Carla Faour e Julia Spadaccini
Imagem: Globo/Victor Pollak
"Temos uma oportunidade única de fazer ficção com relevância social", afirma Carla, que fala da pressão que sentiu pela responsabilidade de produzir uma série realista como Segunda Chamada. "A resposta do público era uma incógnita. Professores estão se sentindo representados, e vemos que o público estava preparado para esse tipo de discussão. Está sendo muito revelador. Carolina Maria de Jesus é uma escola de periferia e com uma precariedade muito grande, mas vemos que o público consegue reconhecer que ali tem uma representatividade do ensino público noturno", diz.

Embora abracem a missão de produzir entretenimento com uma função social, as autoras, que se conhecem há mais de 15 anos, afirmam que não têm a intenção de impor um ponto de vista ou mesmo de levantar bandeiras, como fica claro, por exemplo, quando foi debatido, no terceiro episódio, a intolerância religiosa.

"Não temos a pretensão de apresentar solução para a educação. Quem somos nós? Esse é um problema histórico no nosso país. A nossa preocupação era abordar temas tão delicados sem romantizar, de uma forma realista. E por mais que essa realidade seja dura, procuramos ter um olhar afetuoso. E isso fica claro na série. Por mais que a realidade seja massacrante, a escola é um ponto de acolhimento e esperança. É um ponto de luz na vida daquelas pessoas", afirma Carla.

Acreditávamos que poderíamos ir fundo em certas questões dolorosas, difíceis de encarar, mas se tivesse afeto —inclusive para os que erram— iríamos conseguir. Essa blindagem de afetividade nos deu tranquilidade para abordar esses assuntos

Inspiração na realidade

As histórias de Segunda Chamada saíram do papel depois de um intenso processo de pesquisa, que incluiu experiências in loco em escolas públicas da periferia. Mas o que as autoras contam é que, apesar dessa imersão na realidade, todos os personagens são fictícios, ainda que tenham traços de pessoas comuns.

"Fazemos ficção em cima de dados reais. Não teve nenhum caso de transpor uma história do começo ao fim. Precisamos condensar as histórias. Às vezes a origem de uma história foi uma frase, uma notícia de jornal que a gente leu. Tem muito trabalho de dramaturgia", diz Carla. "A gente leu uma reportagem e vimos na internet uma foto muito emblemática de uma escola em que os alunos estavam assistindo a aula com o guarda-chuva aberto. Construímos, partir disso, o dia de chuva na escola", exemplifica Carla, referindo-se ao episódio em que a escola é inundada durante uma tempestade.

Julia diz que elas nunca sentiram pressão da emissora em relação à audiência e que a preocupação era apenas fazer a história chegar ao público. Por isso, era tão importante que os personagens dialogassem com a realidade. "Vimos a história de um morador de rua que tinha conseguido fazer faculdade e levamos para a série, que é o personagem do José Dumont. A dona Jurema também, interpretada pela Teca Pereira. O tempo inteiro ouvimos os professores falarem de mulheres mais velhas que eram proibidas pelos maridos de estudar."

Alunos tentam ter aula mesmo com a chuva em sala de aula em Segunda Chamada - Reprodução/Globo - Reprodução/Globo
Alunos tentam ter aula mesmo com a chuva na sala em Segunda Chamada
Imagem: Reprodução/Globo

O episódio do aborto

A professora Sonia tenta ajudar Rita, que tomou um abortivo em episódio de Segunda Chamada - Globo/Divulgação - Globo/Divulgação
A professora Sonia tenta ajudar Rita, que tomou um abortivo em episódio de Segunda Chamada
Imagem: Globo/Divulgação

Um dos episódios mais impactantes e comentados até agora nas redes sociais é o que Rita, mãe solteira interpretada por Nanda Costa, morre após a tentativa de fazer um aborto. As autoras se cercaram de cuidados para tocar em um assunto tão controverso no Brasil.

"Quisemos exaltar as mulheres de baixa renda. Uma mulher de classe média paga R$ 1.500 e faz a ligadura. Quem é que vai morrer? É a mulher pobre, que não tem condições. Essa é a desigualdade social. Achamos que essa discussão era mais rica", explica Julia.

Me marcou uma professora que disse: 'O meu aluno era contra o aborto, mas, depois de ver Segunda Chamada, ele entendeu que as mulheres de baixa renda vão fazer e que são elas que vão morrer. Ele refletiu sobre essa questão'

"Em nenhum momento pensamos em levantar a bandeira do aborto, e, sim, em promover uma discussão. Tanto é que não tomamos partido. Isso é uma regra para a gente. No episódio do aborto, tinha uma mulher com três filhos, com poucas possibilidades financeiras e que buscava amparo na rede pública de saúde. Ela faz um aborto e tem complicações de saúde. Ao mesmo tempo, tem uma médica que é contra o aborto, e ela tem razões para ser. Adotou um filho que, se tivesse sido abortado, não teria sido filho dela. O ponto de vista dela é muito defensável. Tentamos nos cercar de argumentos dos dois lados", pondera Claudia.

Segunda Chamada deve chegar ao fim em dezembro e, segundo as autoras, a segunda temporada já está confirmada.