Segunda Chamada: professores relatam dramas reais retratados em série
"É o que ocorre no nosso cotidiano". A frase da professora Ana Maria Silva, que leciona português para adultos em uma escola no Jardim São Luís, em São Paulo, resume o sentimento de muitos professores do EJA (Educação para Jovens e Adultos) sobre Segunda Chamada, série exibida às terças na Globo.
Seu colega, o professor de história Severino Honorato, faz coro: "Toda vez que vejo a Débora Bloch, me vejo. Me dedicando, sofrendo com os alunos". Na história, Lúcia é uma das educadoras da fictícia Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, um colégio público em uma comunidade paulistana, onde jovens e adultos que não conseguiram estudar buscam uma nova oportunidade. No dia a dia, eles enfrentam as dificuldades do sistema público, e os dramas vividos pelos alunos.
Na periferia da vida real, as histórias se misturam. "A realidade da EJA é exatamente como a série retrata. Os alunos chegam cansados, vêm do serviço direto para a escola, às vezes, sem comer", afirma Ana Maria, que vê retratado no seriado de Carla Faour e Júlia Spadaccini muito do dia a dia nas salas de aula.
"Os alunos da EJA costumam doar voluntariamente folhas de sulfite porque o estado mais rico do país não fornece aos professores. Acredito que, com essa série, algum governante encontre aquela sensibilidade que almejamos há anos e faça valer a pena estudar nesse país", acredita.
Com histórias de vidas duras, Segunda Chamada, que foi apelidada pela própria emissora como a "Sob Pressão" da educação, uma referência à série que retrata as agruras de um hospital público, também tem aproximado ficção e realidade.
"Lidamos com todos os tipos de pessoas: drogados, evangélicos, católicos, espíritas, prostitutas, trans. Um mundo difícil e ao mesmo tempo cheio de uma rica diversidade de conhecimentos. As histórias que mais me emocionam são de pessoas mais velhas que têm amor pela aprendizagem", conta Ana.
Já no primeiro capítulo da série, Natasha, a aluna transexual vivida por Linn da Quebrada, é agredida no banheiro masculino e rejeitada no feminino. A trama faz a professora lembrar de outro episódio extremo, vivido por uma aluna da vida real.
"No mês passado, fizemos um sarau na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís, uma aluna nossa trans cantou, dançou Alcione, leu poema de Clarice Lispector, tocou flauta com a professora de artes Lilian. Depois, foi assassinada. Essa história me emocionou muito porque ela foi aplaudida e respeitada, disse que foi o dia mais feliz de sua vida. Uma simples apresentação num sarau da escola", relembra.
O professor Honorato ressalta a importância de ver na série não apenas as histórias vividas pelos professores de educação de adultos, como abrir espaço para muitos outros dramas não vistos comumente na televisão.
"A série também mostra um setor da sociedade bastante discriminado. Gostamos muito de saber que uma emissora dessa dimensão tenha esse olhar, essa compreensão, de dar visibilidade àqueles que não têm".
Tido pelos colegas como alguém tão idealista quanto a protagonista Lúcia, Honorato é elogiado por Ana como alguém que "deixa de pagar aluguel" para conseguir comprar itens para os alunos.
"Essas pessoas, ao longo de sua história, foram alijadas do direto ao ensino. Nós temos histórias de estudantes que pararam porque tiveram que trabalhar, cuidar de filhos, aluna que se formou com 76 anos, mulheres que disseram: 'Me separei porque meu marido não queria que eu estudasse'. Eles se sentem bastante prestigiados e valorizados com isso", relata o professor.
Professor salvador
Apesar da importância dos temas, nem todos os comentários são elogios. Professora de artes da rede público no Paraná, Camila Fujita não é uma espectadora assídua da série mas, pelo que viu, acredita que ela pode reforçar alguns estereótipos.
"Das coisas que eu vi, não gostei nada. Não sou a favor de ficar colocando desgraça. Acho que tem que mostrar sim as coisas ruins, mas a gente tem que ser propositivo. E colocar quase um professor salvador, também não gosto. Eu acho que é um trabalho coletivo, não só dos professores", critica.
"Dentro do contexto atual do Brasil, acho que não é a melhor forma de mostrar a educação brasileira. Acho que está na hora de começar a enaltecer as qualidades, rever os problemas e se posicionar para melhorá-los".
A ressalva também é feita por Severino Honorato: "Não queria que sempre se trabalhasse o lado negativo. A estrutura das escolas é precária mesmo, mas a gente faz acontecer".
Apesar disso, existe a expectativa de que a série possa provocar mudanças na visão do público sobre o poder transformador da educação.
"Nós fazemos esse trabalho diariamente, mas só funciona para os nossos alunos. No entanto, uma série veiculada pela maior emissora do país com esse tema conscientizará muitas pessoas que não imaginam o que é ser professor nesse país", torce Ana Maria Silva.
Naturalismo e repercussão
Planejada há alguns anos, Segunda Chamada viu sua importância social crescer ao ser veiculada em um momento do Brasil no qual constantemente se fala em cortes da educação.
A professora Immacolata Vassallo Lopes, pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP, coloca a série ao lado de Sob Pressão, que define como um marco na televisão por conta de estilo naturalista.
"Além de ser uma série muito bem feita, o roteiro é extremamente impactante. É uma linguagem naturalista, vai além do realismo. Uma espécie daquilo que a gente chama, que não gosto muito do termo, de merchandising social, prefiro ação socioeducativa", diz ela.
Ela diz que este estilo de narrativa permite uma identificação rápida do público com que está sendo exibido: "Você não tem uma mediação. Ela está mesmo falando imediatamente daquela realidade nua e crua. Permite que o público se identifique muito mais rápido".
Immacolata também acredita que o contexto atual do Brasil faz com que a série ganhe relevância. "Ela potencializa muito mais do que se viesse em um momento que não é esse que a gente está vivendo, de uma verdadeira guerra contra a educação. Espero que muitos professores estejam assistindo".
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