'Em Nome de Deus': série revela bastidor de investigação sobre João de Deus
Medo. Vergonha. Trauma. Manipulação. Silêncio. Como romper barreiras tão poderosas e tornar público um dos maiores escândalos sexuais da história do Brasil? É isso que mostra "Em Nome de Deus", série lançada pelo Globoplay, que terá seu primeiro episódio exibido na terça-feira na Globo e, depois, será liberada na íntegra na plataforma de streaming. No Canal Brasil, a série será exibida a partir de quarta, sempre às 20h50. São seis episódios criados a partir de 18 meses de trabalho.
O programa refaz a trajetória da equipe do "Conversa com Bial" (Globo), que revelou em dezembro de 2018 acusações de abuso sexual feitas por mulheres contra o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus.
João de Deus foi preso poucos dias após a exibição do programa, que gerou uma escalada de acusações contra ele. Centenas de mulheres, muitas sofrendo há anos, criaram coragem para revelar suas histórias de abuso e denunciá-lo.
"Me assustou muito como essas mulheres já tinham tentado denunciar antes. Elas tentaram falar, mas não foram ouvidas. A gente tem um caso de uma menina que há dez anos processou João de Deus, e ele foi inocentado. Tem outro caso de 2016, de uma mulher que sofreu abuso, fez boletim de ocorrência, denunciou no Ministério Público. E não teve consequência nenhuma", afirma Camila Appel, redatora do programa, que descobriu e investigou a fundo as denúncias.
Há essa impunidade no Brasil, e nosso papel é acolher essas histórias e revelar.
Desde que o programa foi ao ar, o médium vem sendo julgado em dezenas de casos e já soma mais de 60 anos de prisão em condenações. Amigo de políticos e celebridades, ele atuava desde 1976 em Abadiânia (GO), na Casa Dom Inácio de Loyola, espécie de hospital espiritual que recebia diariamente milhares de pessoas de todas as partes do Brasil e do mundo.
Na série, Pedro Bial e Camila conduzem o telespectador ao longo da meticulosa investigação que gerou as denúncias —e seguem além, aprofundando-se na história de vida do João de Deus, nas denúncias no Brasil e no exterior, nas histórias de suas vítimas, na sobrevivência de Abadiânia em torno do sucesso do médium. O primeiro episódio começa com mulheres explicando o sentimento de estar na cidade e o que todas elas foram lá buscar: cura. "Sentimento de amor", "um lugar para pessoas que procuravam por milagres", "era como falar com Deus".
Entrevista não é conversa
Bial conta que vinha tentando há tempos entrevistar o médium, sem sucesso, até que finalmente recebeu uma resposta positiva, com a condição de que fosse até Abadiânia conhecer a casa em que ele atuava. Topou. Começou, então, a pesquisar sobre João de Deus e o trabalho que ele realizava lá. Na véspera da viagem, desistiu. "Ele dizia que não pedia nada em troca, apenas fé. Eu não tenho fé naquilo, não teria para dar."
O jornalista diz que sempre foi muito cético e que achava as histórias sobre João de Deus "estranhas", embora tivesse ouvidos depoimentos ótimos de pessoas próximas. A entrevista acabou nunca acontecendo, mas o apresentador segue tentando.
O médium foi transferido para prisão domiciliar recentemente, e Bial fez contato com ele via chamada de vídeo. "Ele me falou, olhando para mim, que ia falar e que eu seria o primeiro. Se comprometeu comigo."
Quão diferente será a entrevista pós-denúncias daquela que originalmente Bial estava planejando fazer?
O meu desafio no programa é fazer uma conversa que não seja uma entrevista, que não tenha uma imposição temática e de assuntos. Uma conversa é mais desinteressada. Mas, no caso do João, caso aconteça, será mais para entrevista do que para conversa. Hoje tenho muitas perguntas para fazer que não tinha antes. Realmente não se compara.
Medo de mostrar o rosto
Depois que Bial desistiu de ir a Abadiânia, Camila passou a buscar mais informações sobre o médium e, a partir de uma amiga que já havia trabalhado na Casa Dom Inácio, teve o primeiro contato com histórias de abuso sexual —que mais tarde se confirmariam. A maior dificuldade era conseguir encontrar alguém disposto a aparecer no programa contando o que viveu.
João de Deus sempre foi um homem poderoso e temido. O programa mostra como ele usou disso e da religião para cometer crimes e permanecer com a imagem intacta. A maior parte das vítimas, a princípio, topou falar apenas sob a condição de anonimato. Até que Camila chegou à holandesa Zahira Mous, que acabou se tornando a primeira a denunciar publicamente João de Deus.
"Elas tinham medo de violência, medo das famílias delas, de represália. Existem consequências positivas de falar sobre isso, mas existem consequências muito negativas. No Brasil há uma cultura de descredibilizar as vítimas. E, além disso, aqui a gente tem uma impunidade gigantesca", afirma Camila, que até hoje recebe mensagens de mulheres ligadas ao caso.
A jornalista conta que o trabalho de apuração mexeu com ela.
Em 2018, eu fiquei tomada por isso, 24 horas por dia. Foi muito difícil. Precisei de apoio. Ouvi muitas histórias horrorosas, fiquei abalada, chocada. É uma ferida enorme e, quando a gente convida essas mulheres a compartilhar essa experiência, é também um convite para reviver essa dor.
O episódio de estreia da série termina com um encontro entre algumas mulheres que foram vítimas do médium. Elas se abraçam, se acolhem e trocam experiência. Surpreendem-se com as histórias da filha de João de Deus, que diz ter sido abusada pelo pai desde os 10 anos. Elogiam a coragem umas das outras, em um clima de emoção e dor. E onde menos esperam, a muitos quilômetros de Abadiânia, finalmente encontram o que tanto buscaram. Talvez ainda não seja a cura, mas, entre elas, com certeza existe aquele sentimento de amor.
"O encontro foi uma tentativa de mostrar que compartilhar a dor pode ser bonito e que algo pode surgir disso. No fim da série, eu vi essa dor ser transformada", encerra Camila.
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