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Ferrugem e Mumuzinho sobre nova geração do samba: 'Fazendo a diferença'

Colunista do UOL

02/04/2020 12h00

Resumo da notícia

  • Sambistas afirmam que artistas jovens têm se preocupado mais com família do que com consumismo
  • Eles ainda declaram que o samba não precisa de tanto dinheiro quanto o sertanejo para conquistar espaço
  • A dupla comenta sobre o papel das plataformas digitais no trabalho dos músicos atualmente
  • Ferrugem e Mumuzinho revelam, por fim, o que este período de quarentena mudou na vida de ambos

Dois dos maiores nomes do samba da atualidade, Mumuzinho e Ferrugem, juntaram-se para um bate-papo sobre a história e a importância do gênero. De acordo com Mumuzinho, a nova geração do samba está aprendendo com erros do passado e se organizando cada vez mais e melhor.

"Em 2013, ganhei dinheiro, fiz sucesso, comprei meu carro e minha casa. Tudo o que podia comprar, eu comprei. Mas, graças a Deus, acordei e conheci pessoas maravilhosas que me fizeram me educar financeiramente A nova geração está fazendo a diferença, não se preocupa em pegar mulher, em ter um carro bonito. A nova geração tem família, tem esposa, tem filho. A nova geração guarda dinheiro, a nova geração investe, se preocupa com o bem familiar, se preocupa com o músico, tem respeito. A gente está deixando marca no cenário do samba."

Por falar em família, Ferrugem revelou que foi graças à mulher, Thais Vasconcelos, que mudou a sua relação com o dinheiro: "Se não fosse por ela, eu não tinha nem um apartamentinho hoje. Eu era muito 'gastão'. Ela me pediu uma oportunidade de tomar a frente dessa situação, do financeiro da casa, para mostrar que podia fazer o meu dinheiro render, e aí isso aconteceu".

Ferrugem e Mumuzinho falam, ainda, que diferentemente dos altos investimentos feitos no meio sertanejo, o samba "não precisa de dinheiro". "A música vem da rua para a rádio. A gente está trabalhando uma música, investindo em uma outra e aí, quando vai ver, vem aquela música que toca nos pagodes da rua, vai para a rádio e se torna sucesso nacional", explica Ferrugem.

"A música 'Pirata e Tesouro' do Ferrugem, caramba, quando começou a tocar, o Brasil inteiro acolheu. É por isso que existe o Raça Negra, é por isso que existe o Exaltasamba, é por isso que existiu o Soweto, o Kiloucura, Os Morenos, e o grupo Molejo", complementa Mumuzinho.

Confira abaixo trechos da entrevista:

mumuzinho e ferrugem - Divulgação - Divulgação
Mumuzinho (à esq.) e Ferrugem falam sobre a nova geração do samba
Imagem: Divulgação

Leo Dias - Estou com dois expoentes, dois nomes fortíssimos do samba e do pagode hoje no Brasil. Eu gostaria que você, Mumu, falasse um pouco do Ferrugem.

Mumuzinho - Antes de começar este papo, queria falar que sou um amante do samba, não sou militante do samba. Porque as pessoas acabam confundindo um pouco. A gente está aqui para levar a nossa música, a nossa alegria e o nosso samba, mas a gente respeita e entende que o nosso conhecimento tem um começo. Na minha geração, quando surgi, não tinham muitos cantores solos. Naquela época não tinha Spotify, não tinha o mundo digital. Então, fui sobrevivendo às mudanças do mercado. Na época, não atingi um nível muito alto igual o Ferrugem atingiu. Não tinha isso de divulgar música, não existia essa facilidade.

E uma dependência muito maior da rádio né?

Mumuzinho - Com certeza. A minha dependência era maior da rádio, da gravadora e dos meus fãs. Porque é o seguinte: o Ferrugem —um cara de quem conheço muito a história e posso dizer friamente—, ele atingiu no samba um nível alto em questão de organização, de planejamento de carreira, de rádio, de investimento. Ele chegou a um nível semelhante ao do sertanejo. Porque é muito difícil investir em um trabalho, um exemplo, R$ 400 mil em uma música, sem ter grana.

Ferrugem, me fale um pouco do Mumu, por favor.

Ferrugem - Ah cara, falar do Mumuzinho é muito fácil, porque ele sempre foi um alvo, um espelho para mim. Assim, sempre que eu pensava em dar seguimento a uma carreira profissional, visava o Mumuzinho, porque era o cantor solo da minha geração que estava fazendo sucesso, estava rodando o Brasil. Eu queria muito fazer tudo aquilo que ele estava fazendo. Porque a gente não vive mais em um momento que o samba precisa militar para aparecer. Já fizeram isso no passado por nós. Candeia, Cartola, Roberto Ribeiro, todos esses caras fizeram isso para a gente. Lá na década de 1950, 1940, esses caras fizeram isso quando o samba era marginalizado.

Para o público ter uma ideia, um cantor sertanejo, quando lança uma música, o investimento médio é em termos de R$ 700 mil por música. O investimento de um cantor sertanejo só nas plataformas digitais gira em torno de R$ 200 mil e R$ 300 mil por música. Quer dizer, são valores que não fazem parte da realidade de vocês dois, eu acredito.

Ferrugem - Sim, com certeza.

Eu quero saber: você tem um investimento alto por trás do seu trabalho, Ferrugem?

Ferrugem - Então, cara, acho que tenho o investimento necessário.

Mas é acima da média do samba?

Ferrugem - Não, cara. Acho que a gente, tanto eu quanto o Mumu, a gente transita nas mesmas praças, a gente faz shows nos mesmos lugares, seria até desperdício da minha parte investir mais do que os outros artistas investem, porque a gente consegue continuar transitando nos mesmos lugares, permear as mesmas situações.

O cantor Mumuzinho - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
O cantor Mumuzinho
Imagem: Reprodução/Instagram
Mas vocês entendem a importância de um investimento? Que o sertanejo está em outro patamar porque também tem um investimento maior.

Mumuzinho - Vamos lá. Vamos comparar abertamente o sertanejo e o samba. Eu sou um cantor começando, quero gravar uma música, o que vou fazer? A minha família não tem dinheiro, a minha família não tem berço. Então eu tenho que ver o quê? Um investidor, correto? É muito diferente investidor e empresário.

Investidor busca o lucro. Ele vai buscar, em um certo tempo, um dinheiro maior do que ele investiu, é isso?

Ferrugem - Isso aí.

Mumuzinho - O dono da padaria tem dinheiro, mas o dono da padaria não tem conhecimento para me colocar no mercado. Os sertanejos, o que eles fazem? Juntos eles são uma corrente. Então, assim: tem o pai que é fazendeiro, que tem uma grana, que junta com o conhecimento do compositor, que conhece o produtor. Aí se cria um projeto. No samba, a gente tem que arrumar o investidor, a gente tem que arrumar a condição para o produtor produzir o disco, a gente tem que pagar rádio. Só que a gente não tem essa grana. Agora, se organizar, se a gente começar a botar a música no rádio, se as rádios tocarem os novos artistas, apostarem, como a Transcontinental, a FM O Dia... Tocavam meu som sem dinheiro, sem nada. Eu acho o seguinte: o samba não precisa de dinheiro.

Não?

Ferrugem - A música vem da rua para a rádio. A gente está trabalhando uma música, investindo em outra e aí, quando você vai ver, vem aquela música que toca nos pagodes da rua, ela vai para a rádio e se torna sucesso nacional.

Mumuzinho - Vou explicar o que estou querendo dizer. O samba não precisa da grana para atingir as pessoas, o coração das pessoas.

Estou entendo que é assim: o samba faz parte da nossa raiz, do nosso DNA, e quando a gente encontra um samba bom, vai explodir de qualquer maneira. É isso que você está falando?

Mumuzinho - É isso que estou falando. A música "Pirata e Tesouro", do Ferrugem, caramba, quando começou a tocar o Brasil inteiro acolheu. O único investimento que teve fulminante foi na época da Universal lá atrás e depois não teve mais dinheiro. E aí a música até hoje é sucesso. É por isso que existe o Raça Negra, é por isso que existe o Exaltasamba, é por isso que existiu o Soweto, o Kiloucura, Os Morenos, o grupo Molejo. Porque eles faziam música.

Ferrugem - O Mumu falou sobre o Raça Negra. Para mim é o melhor exemplo para ser dado em questão de mercado. Porque eles, há anos, fazem os shows com as mesmas músicas e continuam sendo sucesso estrondoso.

Queria falar também sobre Spotify. Lá no ranking acho que é primeiro sertanejo, depois funk e só depois samba. Está pingando grana para vocês? É isso que eu quero saber.

Ferrugem - Onde pinga nunca seca, né? [risos] Está pingando, é claro que está pingando. Falando por mim: tenho cerca de 5 milhões, 5,5 milhões de ouvintes mensais e ajuda bastante. Claro que é um bolo dividido em várias fatias, a gente não fica com esse bolo todo. Mas ajuda de alguma forma. Faz com que a gente consiga continuar oxigenando o nosso trabalho, para que ele continue vivo aí.

Mumuzinho - Queria muito falar da questão de organização da nossa geração. A minha geração, que sou eu, Ferrugem, Dilsinho e tal. Em 2013, ganhei dinheiro, fiz sucesso, comprei meu carro e minha casa. Tudo o que podia comprar, eu comprei. Comprei o melhor tênis, comprei tudo, mas nunca pensei, naquela época, em 2020. Eu queria pensar só em 2013. Só que o legado que os empresários têm que passar para os artistas é orientar a fazer um caixa para justamente estar pronto nessas crises, entendeu?

Para as adversidades que vão surgir.

Mumuzinho - Isso. Aí você falou sobre Spotify. O digital é uma fatia. Não consigo pagar as minhas contas, as minhas pensões, as minhas responsabilidades. São três pensões. Então, há quase um ano eu mudei a minha maneira de investir, de guardar.

Como é que você investe o seu dinheiro, Mumu?

Mumuzinho - Cara, hoje invisto em bolsa de valores e invisto em ações. Invisto em tesouro direto, renda fixa.

ferrugem - Divulgação - Divulgação
Ferrugem fez sucesso com "Pirata e Tesouro"
Imagem: Divulgação
Você investe na bolsa, Ferrugem?

Ferrugem - Nas bolsas da Gucci só! [risos]

A sua casa é bonita, Ferrugem. Eu vi lá no programa da Eliana. Parabéns pela conquista, você é merecedor!

Ferrugem - Eu poderia muito bem dizer que eu trabalhei, eu suei, eu consegui comprar essa casa, mas, se não fosse a Thaís, eu não tinha nem um apartamentinho hoje, cara. Eu era muito 'gastão'. E ela me pediu uma oportunidade de tomar a frente dessa situação, do financeiro da casa, para mostrar que podia fazer o meu dinheiro render. E aí isso aconteceu. Hoje eu tenho essa casa quitada graças a Deus. É a minha casa, a nossa casa. Eu tenho outros apartamentos, tenho outras coisas.

Mumu - A nova geração está ensinando, sim, a fazer a diferença. A nova geração não se preocupa em pegar mulher, em ter um carro bonito. A nova geração tem família, tem esposa, tem filho. A nova geração guarda dinheiro, a nova geração investe, a nova geração se preocupa com o bem familiar, se preocupa com o músico, tem respeito. A gente está deixando nossa marca no cenário do samba. Então, só para concluir o que eu estava falando sobre grana, deixo um recado para os novos artistas: pensem! Eu pensava muito no 2013, não pensava no 2020, mas graças a Deus eu consegui. Acordei e conheci pessoas maravilhosas que me fizeram me educar financeiramente.

Este período parado vai representar um prejuízo de quantos por cento no faturamento do ano, mais ou menos?

Ferrugem - Em vista de números não vou saber te dizer com exatidão. Mas a gente está falando de um rombo milionário, sem dúvida alguma, que vai causar uma crise muito em breve se as coisas não mudarem. Para fazer um show do Mumuzinho ou do Ferrugem se mobiliza mais de 500 profissionais.

Mumu - Quando acabar tudo, no final de tudo, aí vai voltar a música, voltar o público. Teve, sim, um prejuízo. Deixei de ganhar, a banda deixou de ganhar. Só que as contas não param. A pensão não posso deixar de pagar, senão vou preso. Muitas vezes as pessoas têm uma imagem de que ganhamos milhões. Não, peraí. Tem gravadora, tem empresário, tem sócio, tem a estrutura que a gente paga, o investimento.

O que este momento que vocês estão parados está trazendo de positivo tanto para a vida pessoal, quanto para a vida profissional de vocês dois?

Mumuzinho - Olha, este tempo parado está me fazendo refletir sobre a humanidade. Poder entender em que mundo a gente vive, que situação a gente está vivendo hoje. Fiquei por muito tempo longe dos meus filhos, da minha família, da esposa. E está me fazendo entender que, às vezes, a gente tem que parar e analisar certas atitudes, entendeu? Me vejo como o Márcio, como aquele garoto lá de Realengo. Fiz sucesso, enchi casas, mas sou a mesma pessoa. Hoje eu me vejo mais como aquele Mumuzinho lá de trás, sem público, sem nada.

Ferrugem - Cara, esse lance de ficar com a família é maravilhoso, né? Porque a gente não tem muito tempo. Estou curtindo a criançada. Mas eu acho que o que mais pegou, assim de reflexão, foi saber que eu preciso dar mais valor a coisas que a gente recebe através da nossa arte, que é o nosso público. O amor das pessoas, o carinho.

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