Órfãos da Terra compensa história frágil com belo discurso sobre tolerância
Mauricio Stycer
27/09/2019 19h09
Num mundo em conflito, marcado por polarização política, radicalização religiosa e preconceitos morais de todos os tipos, "Órfãos da Terra" investiu numa verdadeira utopia. E se fosse possível deixar a intolerância de lado e respeitar o próximo exatamente como ele é?
O tema principal, o drama de refugiados de guerra da Síria, logo se expandiu. Em torno do centro comandado por um padre progressista e humanista, Zoran (Angelo Coimbra), outros expatriados, da África e da América do Sul, encontraram guarida para reunir forças e seguir novos caminhos no Brasil. O apelo por solidariedade e empatia foi insistentemente apresentado como uma necessidade de primeira ordem.
Mais interessante ainda, os dois idosos que representavam as comunidades, o árabe Mamede (Flavio Migliaccio) e o judeu Boris (Osmar Prado), se tornaram amigos e cúmplices num momento de dor – a doença do primeiro.
As autoras foram muito felizes na forma como mostraram o desenvolvimento dos traços de Alzheimer em Mamede e reforçaram a necessidade de apoio ao idoso nesta situação. As cenas de Migliaccio e Prado nas últimas semanas foram lindas, de partir o coração.
"Órfãos da Terra" também tratou de machismo de uma forma inteligente. Numa novela que já havia exibido um casal formado por um homem mais velho e uma mulher bem mais nova, as autoras propuseram a situação inversa – uma mulher mais velha e um garoto.
O mundo desabou sobre Letícia (Paula Burlamaqui) e Benjamim (Filipe Bragança) de uma forma que não havia desabado sobre Norberto (Guilherme Fontes) e Valéria (Bia Arantes), obrigando o espectador a ver que as situações eram idênticas.
Aline (Simone Gutierrez), mãe de Benjamim, foi usada para discutir a questão da diferença de idades. Ela também foi útil para as autoras defenderam a importância da adoção, em algumas situações. Sem conseguir engravidar novamente, e ter uma menina, seu sonho, Aline acabou entendendo que tinha outras opções.
A conciliação de opostos também foi tema do casal formado por Laila (Julia Dalavia) e Jamil (Renato Goes). Ambos árabes, mas ela cristã e ele muçulmano. Cada um com a sua fé e a tarefa de educar uma criança sem forçar a religião de um ou de outro. E do casal formado no final entre o vilão Fauze (o sírio Kaysar Dadour, uma surpresa) e a empregada fofoqueira Santinha (Cristiane Amorim).
No penúltimo capítulo, finalmente, a Globo autorizou o beijo entre Valéria (Bia Arantes) e Camila (Anaju Dorigon)
Por fim, mas não menos importante, com Valeria (Bia Abrantes) e Camila (Anajú Dorigon), a novela tratou do amor entre duas mulheres. Mostrando como o assunto ainda incomoda, no mesmo dia em que criticou Crivella por censurar uma HQ na Bienal, a Globo vetou a exibição de um beijo entre as duas personagens. Ao final, acabou cedendo e autorizando, no penúltimo capítulo, que os fãs visses as duas se beijando.
A apresentação destas situações todas não me soou forçada em momento algum. O problema de "Órfãos da Terra" é que a história sobre a qual todos estes dramas se assentarem era muito frágil.
"Órfãos da Terra", enfim, foi uma novela estranha. Tratou de temas importantes com muita delicadeza e inteligência, mas não conseguiu amarrar tantos fios em torno de uma história bem estruturada. Creio que será lembrada como uma novela que poderia ter sido muito melhor do que foi.
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Sobre o autor
Mauricio Stycer, jornalista, nascido no Rio de Janeiro em 1961, mora em São Paulo há 30 anos. É repórter especial e crítico do UOL. Assina, aos domingos, uma coluna sobre televisão na "Folha de S.Paulo". Começou a carreira no "Jornal do Brasil", em 1986, passou pelo "Estadão", ficou dez anos na "Folha" (onde foi editor, repórter especial e correspondente internacional), participou das equipes que criaram o diário esportivo "Lance!" e a revista "Época", foi redator-chefe da "CartaCapital", diretor editorial da Glamurama Editora e repórter especial do iG. É autor dos livros "Topa Tudo por Dinheiro - As muitas faces do empresário Silvio Santos" (editora Todavia, 2018), "Adeus, Controle Remoto" (Arquipélago, 2016), “História do Lance! – Projeto e Prática do Jornalismo Esportivo” (Alameda, 2009) e "O Dia em que Me Tornei Botafoguense" (Panda Books, 2011).
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